sábado, 11 de abril de 2009

A páscoa cristã

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Reza a tradição que a Páscoa foi uma festa judaica instituída por ocasião do Êxodo. Segundo a narrativa do Pentateuco, os hebreus eram cativos no Egito, e seu Deus os libertou assolando os escravizadores com pragas. A última era a morte dos primogênitos, da qual os lares judeus escapariam matando um cordeiro e aspergindo sangue nos umbrais. O Anjo-do-Senhor passaria reto pelas casas que tivessem o sinal. O cordeiro imolado seria comido numa refeição ritual, a qual incluiria os pães sem fermento e as ervas amargas.

Acontece que esses relatos nunca pretenderam ser "históricos". São símbolos religiosos, rituais. Não se sabe se foram escritos no século VIII ou no século V antes da era cristã. Acredito que os hebreus escravos não teriam cordeiros suficientes para uma celebração deste tipo no Egito. Trata-se, na verdade, de instituir a refeição ritual como memória de um momento fundador do passado de um povo - mesmo que ele não tenha existido. Isso não importa.

De qualquer forma, celebrar a páscoa tornou-se um dos ritos mais importantes do judaísmo.

Mas houve um tempo em que um certo herege, um galileu capaz de amealhar seguidores por todos os lados, entrou em Jerusalém com alguns discípulos. Com eles celebrou uma ceia de páscoa sem cordeiro, somente com pão e vinho. Anunciou aos discípulos que morreria naqueles dias, e recomendou-lhes que tomassem aquela refeição ritual em sua memória sempre que se reunissem.

O galileu foi crucificado exatamente nos dias da páscoa. E os seus seguidores passaram a celebrar sua memória por ocasião da festa judaica. Com o passar dos anos, à medida que a presença do Cristo ia ficando distante no tempo, começam a surgir e ser discutidas idéias a respeito da ressureição e da divindade daquele a quem seguiam. Certo era que para os primeiros discípulos ele estava muito vivo, apesar de ter sido morto. Sua morte tinha gravado com fogo seus ensinamentos e seu exemplo nos corações daqueles pobres palestinos.

Algumas gerações depois, aquele movimento espontâneo, radical e herege que tinha sido a comunidade dos discípulos começava a se institucionalizar. Agora um bispado monárquico, não mais uma liderança plural. Agora uma ortodoxia e textos sagrados pelos quais morrer, não mais apenas uma comunidade de fé e amor. Ao invés do igualitarismo radical de antes, hierarquias. Os evangelhos vão sendo escritos entre o final do primeiro século e o início do segundo - quatro foram aceitos como canônicos pela magistratura da igreja, os muitos outros existentes foram recusados por vários motivos. Conhecê-los (o que já é possível hoje) diz muito sobre essa igreja que surgia.

Do século IV ao VIII os concílios da igreja definiram a doutrina oficial e congelaram uma memória do passado a ser preservada conforme seus interesses institucionais.

Cristo totalmente divino e humano concebido virginalmente do Espírito Santo morreu e ressucitou ao terceiro dia e foi para a destra do pai compondo os três uma única pessoa divina chamada de trindade.

Assim, cristalino e claro.

Questione qualquer um desses pontos e serás morto. Porque desde Agostinho o magistério da igreja é também apoiado pela força do Estado e os hereges tem que ser submetidos ou mortos.

No século XV, quando os Otomanos tomaram Constantinopla, a Itália começou a receber refugiados da igreja grega. Fundam-se academias e o grego antigo é descoberto, passa a ser ensinado. Os ignorantes latinos começam a descobrir a igreja antiga e percebem o quanto se afastaram dela. O lema dos humanistas passa a ser Ad fontes. As escrituras e os pais da igreja antiga, se possível depurados do entulho medieval. Erasmus publica um Novo Testamento grego, a partir do qual Lutero faz sua tradução para o alemão. O motivo? A Vulgata, tradução latina coordenada por Jerônimo no século V era a única versão aceita pela igreja. Mas continha erros grosseiros.

Lorenzo Valla, secretário do papa começou a estudar documentos oficiais para determinar sua autenticidade. Demonstrando a falsidade da Doação de Constantino inaugurou a crítica documental. Disciplina fundamental para o surgimento da história como disciplina acadêmica no século XIX.

A mesma disciplina histórica que começou a ser aplicada pelos luteranos à crítica das Sagradas Escrituras, demonstrando que não podiam ser aceitas como documento histórico confiável, pelo menos não na medida em que vinham sendo usadas pela tradição. Começaram a ser determinados os períodos de confecção dos livros bíblicos e as autorias, processo até hoje em andamento. A veracidade factual dos milagres foi contestada.

Hoje a Bíblia já pode ser lida como o que realmente é. Uma coleção de livros de testemunho, escritos em diferentes épocas, sem uma versão oficial, sem autores definidos e sem qualquer pretensão factual ou científica. Para ser lido como literatura. Para ser tido como inspiração.

No século XX uns teimosos sulistas dos EUA, e os campos missionários sob sua influência erigiram uma coleção de fundamentos inegáveis da fé. Entre os quais o nascimento virginal, a divindade e a morte e a ressureição de Cristo. Os mesmos dogmas que a igreja romana também sustenta com base na autoridade não das Escrituras, mas de uma pretensa magistratura derivada do apóstolo Pedro. Mas os fundamentalistas acrescentaram mais uma novidade - a iminência da volta de Cristo, que passou a ser também o principal tema de seus livros e de sua pregação radical e intolerante.

Fica difícil celebrar o Cristo vivo, quando tanto entulho institucional já se sobrepôs ao signficado de renovação que ele trouxe há dois mil anos. Tem muita gente tentando fazer isso - jutemo-nos a eles.


P.S. Sobre os modos de ler a Bíblia recomendo, de novo, o texto na Trilha: Reticências. Também já está lá uma leitura da Páscoa: As três páscoas.

P.S.2 De certa forma este texto aqui pode ser uma resposta a outro do Catatau: A páscoa e a radicalidade do cristão.

P.S.3 No Soda cáustica, algo sobre a morbidez com que se celebra a paixão de Cristo: A acusação.

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5 comentários:

Iza disse...

Lindo post André vou visitar mais seu blog. Feliz Páscoa.

Alysson Amorim disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alysson Amorim disse...

Caro André,

Ainda não conhecia seu blog, e devo lamentar.

Lúcido, seu texto.

Somos chamados a árdua tarefa arqueológica que consiste em salvar a voz do Nazareno de todo "entulho institucional" que a encobre; de achar, sobre a pseudo-pintura do Evangelho, sua coloração original e libertária: provavelmente espelhada.

***

P.S: A respeito de seu comentário no blogue, penso que sem a bossa-nova nos restaria o mesmo futebol de prosa dos ingleses e alemães, mas jamais o nosso futebol de poesia, como definiu os olhos repletos de graça de Pasolini. O futebol seria viável nestas latitudes sem a bossa-nova; mas Garrincha não.

André Egg disse...

Obrigado pela visita Alysson. Conheço teu blog meio de longe, o que é uma lástima, porque me parece muito bom.

Sobre o futebol e a Bossa Nova, você tem que ver o livro do Wisnik - Veneno remédio, o futebol e o Brasil. Já comentei alguma coisa aqui no blog. Aliás, ele parte mesmo desse texto do Pasolini.

http://paginadecultura.blogspot.com/2008/10/jos-miguel-wisnik-o-futebol-como.html

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Iza,

ótima páscoa pra você também. Grato pelos elogios...

Alysson Amorim disse...

André,

Gostei do seu texto. Já havia lido a resenha do Idelber sobre o livro do Wisnik.

Essa lógica não-matemática do futebol torna-o selvagem e encantador: você pode perfeitamente ser golpeado nos acréscimos da segunda metade de um jogo até então com o escore zerado. É um jogo que trapaceia inclusive na regra mais comezinha dos jogos - pode terminar empatado.

Para o homo ludens brasiliensis, o futebol, mais que um esporte, é mesmo uma linguagem.

Um abraço.