quinta-feira, 30 de abril de 2009

Stravinski - Sagração da Primavera

Esclarecimento: este texto é antigo - existe um mais atual e mais completo em http://andreegg.org/2020/05/16/stravinski-da-vanguarda-ao-neoclassicismo/ 

Esta peça é uma das mais importantes obras musicais já escritas. Os críticos e historiadores são unânimes em considerá-la uma obra de grande impacto, quando de sua estréia em 1913. O compositor Igor Stravinski (1882-1971) é considerado por muitos como o compositor mais significativo do século XX. A Sagração é o terceiro balé de uma série composta para ser encenada em Paris, pela companhia Os balés russos de Diaghilev. Os primeiros dois foram O pássaro de fogo e Petrouschka ("Pedrinho" em russo). É a obra mais inovadora de Stravinski, no sentido de rompimento com a tradição musical do século XIX. A obra é atonal (não se baseia nas tonalidades maior e menor que imperaram na música ocidental desde o início do século XVIII), foge à rítmica tradicional do pulso e do compasso e representou uma grande inovação em relação às técnicas de orquestração do século XIX (a escolha dos instrumentos musicais que tocam cada parte - Stravinski privilegia os sopros, e usa as cordas quase como instrumentos de percussão). Para o público de balés, acostumado a obras mais tradicionais (em termos de construção harmônica, orquestração e, principalmente, elementos rítmicos) - como os balés de Tchaikovski, a encenação da obra de Stravinski foi um escândalo. Depois da composição desta obra, Stravinski tomou rumos mais tranqüilos em seu estilo de composição, passando a uma fase chamada neo-clássica (décadas de 1920-1950), onde retomava com ironia os procedimentos harmônicos setecentistas. Somente na década de 1950 o compositor voltaria a escrever obras tão radicais como a Sagração. Mesmo sendo uma obra de 1913, a Sagração continua a ser uma obra radical, moderna, e - porque não dizer - continua escandalizando o público não acostumado a expressões artísticas de vanguarda. Existem miríades de gravações desta peça. Mas hoje a maravilha que é a internet e a disponibilização de trabalhos através dela nos permite algumas descobertas. A San Francisco Synphony e seu regente Michael Tilson Thomas fizeram um trabalho educativo. Clicando aqui você irá para a página em que a obra de Stravinski é destrinchada. Escolhendo a opção A riotous premiere você acessa um documentário (em inglês) sobre os envolvidos na criação da obra: Stravinski (música), Nicolas Roerich (argumento), Nijinski (coreografia), Diaghilev (produção). Escolhendo a opção Explore the score você acompanha a execução de trechos enquanto observa a partitura orquestral em animação. Também é muito interessante assistir à obra completa - música e coreografia. Tempos atrás, fez-se uma reconstituição da coreografia original de Nijinski, com base nos depoimentos de uma dançarina que fez parte da encenação de 1913. Este balé é realmente uma experiência impressionante, com o vigor da música correspondido por uma coreografia igualmente poderosa. Abaixo os vídeos no youtube, em três partes: Tanto o trabalho da San Francisco Synphony como os vídeos do youtube descobri através do excelente verbete da wikipedia em inglês. .

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Sobre as cotas raciais

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É muito interessante ouvir um argumento não cretino contrário às cotas raciais. Quem o faz (por enquanto o único que conheço) é o Rafael Galvão. Se mostra desconfortável de estar na mesma posição de gente como Demétrio Magnoli ou Ali Kamel. Critica o argumento a favor das cotas por se basear no exemplo norte-americano, diferente demais do caso brasileiro como bem demonstra o Rafael.

Gostei do texto do Rafael, mas continuo a favor das cotas. O grande problema a enfrentar é como definir um negro. Muito sutil, e presta-se a diversos tipos de problemas. Ao contrário do Rafael, que acredita que as cotas sociais (reserva de vagas a alunos oriundos de escola pública) sejam mais eficientes, acredito que deve existir um tipo de combinação entre cotas raciais e sociais. Vale lembrar que também existem cotas para indígenas nas universidades.

E defendo que as cotas não apenas são justas e eficientes, como é necessário ampliá-las. Um negro com diploma de curso superior continuará a ser preterido na disputa por um emprego. É preciso ter cotas para negros nos concursos públicos e nas candidaturas políticas (já existem cotas para candidaturas femininas).

Mas o mais importante mesmo, é a melhora radical na qualidade dos serviços públicos, que seriam a grande tacada pelo desenvolvimento social e humano. O problema é que os mesmo que negam a validade das cotas (caso do Magnoli e do Kamel, mas não do Rafael) - são os que defendem a redução do papel do Estado e que lutam para continuar aplicando o tipo de cota racial que sempre existiu no Brasil: cotas de 100% para brancos bem-nascidos.

Vale a pena ler também o Alex Castro criticando o livro de Ali Kamel sobre um Brasil não racista.

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sábado, 25 de abril de 2009

Há 40, 50, 60 anos - Miles Davis

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1949:



1959:



1969:



Clicar nas imagens remete a links para textos do projeto 200 anos de música, do blog Um piano na floresta. Explicações sobre os discos e alguns áudios e vídeos muito interessantes.

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domingo, 19 de abril de 2009

Uma história de Deus

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ARMSTRONG, Karen. Uma história de Deus. Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

É um livro muito instrutivo, que serve para repensar muito da idéia que temos de Deus. No Ocidente, temos uma visão pautada pelo racionalismo, uma noção de um Deus pessoal controlando a história e usando seu imenso poder para garantir o sucesso de um texto canônico e de uma ortodoxia a ele associada.

O estudo da história do conceito de Deus nas principais culturas monoteístas leva a uma dimensão mais correta dessa noção de Deus como uma das possíveis e existentes.


O surgimento de Deus: do judaísmo ao cristianismo

Para a autora, a noção de Deus único, universal e criador, consolidou-se entre os judeus no exílio babilônico. É uma idéia claramente semita, desenvolvendo-se a partir do Deus tribal dos patriarcas, e chegando a um Deus nacional institucionalizado pelo clero do tempo do rei Josias (séc. VIII a.C.) e do 2º templo (séc. V a.C.). A este Deus “domesticado” pelo interesse clerical, se opôs o Deus revelado, mistério terrível e fascinante que levou compulsivamente ao ministério de pregação de homens radicais como Isaías (o primeiro e o segundo), Ezequiel, Jeremias ou Oséias. Todos atuantes neste período exílico.

Depois a autora estuda como se desenvolveu o conceito de Deus no círculo dos seguidores de Jesus, em trechos que os ortodoxólatras considerariam anátema, pois a autora sugere que Paulo não tenha afirmado a divindade de Cristo.

A noção de um Cristo divino e humano foi sendo elaborada junto com a ortodoxia e o cânon cristãos, bem como a noção de trindade. Aliás, o cristianismo de fala grega e o de fala latina desenvolveram noções completamente diferentes para cada um desses conceitos.

Para mim foi uma verdadeira epifania a explicação que Armstrong fez do conceito de trindade para os pais gregos do século IV, também conhecidos como “os três capadócios” por causa de sua região de origem – na atual Turquia. Para eles, a trindade era forma de ver Deus como mistério absoluto e inalcançável ao homem. Nenhuma de nossas categorias de pensamento ou análise seria capaz de apreender ou explicar Deus. O ministério da trindade era uma ferramenta pedagógica para lembrar o homem de sua incapacidade diante dessa divindade suprema.

No Ocidente, o conceito foi usado às avessas, principalmente a partir de Agostinho. A cristandade latina desenvolveu a noção de que o conceito de trindade era uma dogma, entendendo essa palavra como sinônimo de uma explicação perfeita, acabada e inquestionável. Assim, Deus passou a ser, no Ocidente, algo que o homem pode conceber racionalmente, aprender-apreender-prender. Daí foi um passo às concepções utilitárias de um Deus a nosso serviço.


Alá: o mesmo Deus numa nova revelação

Em contraposição à consolidação da noção de trindade do cristianismo, a autora narra a história de uma nova revelação de Deus. Após o surgimento do conceito de Deus supremo no mundo semita, e de sua adaptação ao mundo helênico mediterrâneo e, posteriormente, ao mundo latino-germânico europeu, agora eram os árabes que teriam sua própria revelação do ser supremo. Alá era, na revelação recebida por Muhamad (Maomé) o mesmo Deus de judeus e cristãos, que agora se revelava diretamente aos árabes, que aliás, eram também filhos de Abraão.

Para mim que sou cristão de longa tradição familiar e cultural, foi de grande importância aprender com o livro de Karen Armstrong o quanto as três religiões de Deus são próximas e interligadas.

A partir desse momento o livro passa a descrever o pensamento teológico nas três grandes religiões com seus entrelaçamentos e influências mútuas, maiores do que eu poderia pensar. No livro aparece então um capítulo sobre “o Deus dos filósofos” e outro sobre “o Deus dos místicos”, que traçam um histórico dos pensamentos teológicos nas três religiões entre os séculos IX e XIV. Tudo que ela escreveu ali sobre o islã e sobre o judaísmo foram para mim novidades absolutas e intrigantes. Algo que preciso investigar mais para entender melhor.

Segue-se um capítulo sobre “o Deus dos reformadores”, que ressalta a necessidade de reformulação nas teologias das três grandes religiões. Os cristãos, que a essa altura já tinham uma divisão bem consolidada entre cristianismo ocidental e oriental, viram a cristandade medieval fragmentar-se em múltiplas confissões. Este processo é analisado superficialmente pela autora.


O Deus dos modernos

Quando o livro chegou a temas e períodos históricos que me são mais familiares percebo quão limitado pode ser um livro que se pretende escrever uma história de 4 mil anos. Imprecisões e generalizações são inevitáveis, ainda mais que a autora se baseia em grande parte em material de segunda mão. Ou seja, como o livro é uma obra de “vulgarização” científica, não leu as fontes ou estudos originais, mas sempre a partir de outros autores. É sempre perigoso fazer história a partir de compilações, mas obviamente é humanamente impossível fazer pesquisa em arquivos para um “recorte temporal” de 4 milênios.

A partir daí percebe-se que a autora segue um “programa” ou “pregação” doutrinária: propor, e defender, a partir da compreensão da diversidade de concepções do divino, uma visão menos restritiva de Deus. Assim, o racionalismo, que se erigiu a partir do século XVIII como categoria máxima e absoluta de compreensão do mundo e como fundamento da modernidade capitalista, teve como efeito colateral uma simplificação da idéia de Deus. Deus passa a ser o totalmente explicável, redutível a dogmas confessionais, aprisionável a explicações “científicas”.

A história de Deus deveria ser, para alguns, a história dogmática dessa ação divina no mundo. Mas para a autora é a história de como os homens construíram suas noções de uma divindade única. A modernidade seria então a história não de homens que lutam para se libertar de Deus, mas para libertar Deus do homem, combatendo essa noção de Deus fruto da mente racional.


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quinta-feira, 16 de abril de 2009

Gustavo Dudamel e a Orquestra Sinfônica Jovem Simon Bolívar da Venezuela - a nova sensação da música de concerto

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BBC Proms é o nome de um dos principais eventos da música de concerto. A edição 2009 terá 95 concertos em duas salas britânicas, entre 17 de julho e 12 de setembro - período das férias de verão no hemisfério norte.

Na edição de 2007 a principal atração foi uma orquestra venezuelana formada com jovens de origem pobre, dirigida por um regente de 28 anos que já é um dos músicos mais brilhantes do mundo do concerto.

A Orquestra Jovem Simon Bolívar é o topo de um sistema musical que tem mais de 100 orquestras, atendendo mais de 250 mil jovens pobres venezuelanos, e que funciona sem interrupções há 34 anos. Tudo isso na América do Sul, num país que nesse meio tempo já viu vários governos derrubados.

Impressionantes os vídeos da orquestra tocando no festival britânico a suíte West Side History, de Leonard Bernstein. São 3, e somam 25 minutos, mas para quem não tiver paciência coloquei um 4° vídeo, só com o trecho do Mambo, a parte mais empolgante da peça do compositor norte-americano. Os músicos tocam vestidos com a bandeira da Venezuela e fazem coreografia. Um antídoto para quem acha que orquestra é sinônimo de música maçante.









(Soube por uma matéria do Irineu Franco Perpétuo na Folha de 8/4/09, Ilustrada E-5)

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quarta-feira, 15 de abril de 2009

Um ranking do futebol brasileiro (III) - Campeonato Brasileiro 1980-1989

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Seguindo o que já venho fazendo aqui no blog:

Um ranking do futebol brasileiro (I) - Taça Brasil1958-1969

Um ranking do futebol brasileiro (II) - Campeonato Brasileiro 1971-1979


Aos desavisados informo que sou uma das maiores autoridades sobre futebol, torcedor desde criancinha, aspirante a técnico da seleção brasileira, estatístico de boteco, historiador de ofício (mas não dedicado ao tema). Na verdade sou professor de música, o que nao vem ao caso. Pois todos vão ver que meu ranking é infalível.

5 pontos para o campeão.

2 pontos para os outros três que chegaram à semifinal

1 ponto para quem esteve entre 5° e 12°


Os dados que utilizo são os disponíveis na wikipedia.


Que não venha nenhum flamenguista chorar aqui, mas em 1987 alguns grandes clubes resolveram organizar uma liga independente e não disputaram o campeonato da CBF. Tudo bem, também acho a CBF uma merda, os campeonatos desorganizados e tal. Então, se os chamados "13" continuassem a organizar sua liga, passariam a figurar nas estatísticas. Mas não. Vieram pedir penico e voltaram à palhaçada da CBF em 1988. São tão palhaços quanto, e não merecem consideração nenhuma. E desde já esclareço que não sou pernambucano e que meu time está entre os que birgaram com a CBF em 1987.


Para a década de 1980 o ranking fica assim:


1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 total
Flamengo 5 1 5 5 1 1

1 1 20
Vasco 1 1 1 1 2 1

1 5 13
São Paulo 1 2 1 1

5
1 2 13
Grêmio 1 5 2
2


2 1 13
Fluminense 1 1 1
5
1
2
11
Atlético MG 2

2
2 2
1 1 10
Sport
1 1 1
1
5 1
10
Coritiba 2


1 5

1
9
Corinthians 1
2 1 2
1

1 8
Bahia




1 1
5
7
Santos 1 1 1 2 1



1 7
Internacional 2 1


1

2
6
Guarani

2


2 2

6
Cruzeiro 1




1
1 2 5
Portuguesa



1
1 1 1 1 5
Bangu

1

2
2

5
Atlético PR


2 1

2

5
Botafogo
2






2 4
Ponte Preta 1 2


1



4
América RJ


1 1
2


4
Palmeiras


1

1

1 3
Goiás


1




1 2
Vitória
1




1

2
Inter de Limeira





1 1

2
Criciúma





1 1

2
Ceará




1
1

2
Brasil de Pelotas




2



2
Santo André



1




1
Operário MS
1







1
Atlético GO






1

1
Rio Branco ES






1

1
Treze PB






1

1
Náutico



1




1
Anapolina

1






1
Joinville




1



1
Ferroviária SP


1





1
São José SP

1






1


Certamente algum dia eu irei somar tudo e chegar ao ranking definitivo e inapelável.


Por enquanto, posso adiantar que, se fosse para fazer uma 1ª divisão com os 20 principais clubes do campeonato nacional do período entre 1958-1989 ficaria assim:


1958-69 1971-79 1980-89 total
Santos 29 5 7 41
Palmeiras 12 19 3 34
Internacional 1 24 6 31
Vasco 3 13 13 29
Flamengo 2 6 20 28
São Paulo
12 13 25
Atlético MG
13 10 23
Cruzeiro 7 10 5 22
Grêmio 3 6 13 22
Botafogo 8 7 4 19
Bahia 9 3 7 19
Fluminense 2 4 11 17
Corinthians
9 8 17
Coritiba
6 9 15
Guarani
8 6 14
Sport 1 2 10 13
América RJ 1 2 4 7
Atlético PR
2 5 7
Náutico 6
1 7
Portuguesa
2 5 7

Em breve as estatísticas das décadas de 1990 e 2000.

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terça-feira, 14 de abril de 2009

Sigismund Neukomm

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Foi um importante compositor que viveu no Rio de Janeiro durante o período da corte joanina. É apontado por Maurício Monteiro como um dos integrantes da "trindade tropical", juntamente com José Maurício Nunes Garcia e Marcos Portugal.

Para uma introdução à biografia do músico austríaco, recomendo o verbete que estou ajudando a construir na wikipedia.

Aqui vou dar apenas algumas dicas interessantes para ouvir na internet a música deste importante mas pouco conhecido personagem, tudo em vídeos disponíveis no youtube.

Em duas partes, os vídeos da execução do Libera me Domine que Neukomm compôs para integrar o programa de concerto no qual foi estreado no Brasil o Requiem de Mozart, em 1819.







Cena da ópera Misera, dove son? de 1804. O vídeo foi montado com imagens ilustrativas, a partir da obra gravada neste CD.




E mais um víedo, com trecho de uma peça para flauta e forte-piano, composta no Brasil. A obra também faz parte deste CD gravado por Rosana Lanzelotte e Ricardo Kanji para a Biscoito Fino.




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sábado, 11 de abril de 2009

A páscoa cristã

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Reza a tradição que a Páscoa foi uma festa judaica instituída por ocasião do Êxodo. Segundo a narrativa do Pentateuco, os hebreus eram cativos no Egito, e seu Deus os libertou assolando os escravizadores com pragas. A última era a morte dos primogênitos, da qual os lares judeus escapariam matando um cordeiro e aspergindo sangue nos umbrais. O Anjo-do-Senhor passaria reto pelas casas que tivessem o sinal. O cordeiro imolado seria comido numa refeição ritual, a qual incluiria os pães sem fermento e as ervas amargas.

Acontece que esses relatos nunca pretenderam ser "históricos". São símbolos religiosos, rituais. Não se sabe se foram escritos no século VIII ou no século V antes da era cristã. Acredito que os hebreus escravos não teriam cordeiros suficientes para uma celebração deste tipo no Egito. Trata-se, na verdade, de instituir a refeição ritual como memória de um momento fundador do passado de um povo - mesmo que ele não tenha existido. Isso não importa.

De qualquer forma, celebrar a páscoa tornou-se um dos ritos mais importantes do judaísmo.

Mas houve um tempo em que um certo herege, um galileu capaz de amealhar seguidores por todos os lados, entrou em Jerusalém com alguns discípulos. Com eles celebrou uma ceia de páscoa sem cordeiro, somente com pão e vinho. Anunciou aos discípulos que morreria naqueles dias, e recomendou-lhes que tomassem aquela refeição ritual em sua memória sempre que se reunissem.

O galileu foi crucificado exatamente nos dias da páscoa. E os seus seguidores passaram a celebrar sua memória por ocasião da festa judaica. Com o passar dos anos, à medida que a presença do Cristo ia ficando distante no tempo, começam a surgir e ser discutidas idéias a respeito da ressureição e da divindade daquele a quem seguiam. Certo era que para os primeiros discípulos ele estava muito vivo, apesar de ter sido morto. Sua morte tinha gravado com fogo seus ensinamentos e seu exemplo nos corações daqueles pobres palestinos.

Algumas gerações depois, aquele movimento espontâneo, radical e herege que tinha sido a comunidade dos discípulos começava a se institucionalizar. Agora um bispado monárquico, não mais uma liderança plural. Agora uma ortodoxia e textos sagrados pelos quais morrer, não mais apenas uma comunidade de fé e amor. Ao invés do igualitarismo radical de antes, hierarquias. Os evangelhos vão sendo escritos entre o final do primeiro século e o início do segundo - quatro foram aceitos como canônicos pela magistratura da igreja, os muitos outros existentes foram recusados por vários motivos. Conhecê-los (o que já é possível hoje) diz muito sobre essa igreja que surgia.

Do século IV ao VIII os concílios da igreja definiram a doutrina oficial e congelaram uma memória do passado a ser preservada conforme seus interesses institucionais.

Cristo totalmente divino e humano concebido virginalmente do Espírito Santo morreu e ressucitou ao terceiro dia e foi para a destra do pai compondo os três uma única pessoa divina chamada de trindade.

Assim, cristalino e claro.

Questione qualquer um desses pontos e serás morto. Porque desde Agostinho o magistério da igreja é também apoiado pela força do Estado e os hereges tem que ser submetidos ou mortos.

No século XV, quando os Otomanos tomaram Constantinopla, a Itália começou a receber refugiados da igreja grega. Fundam-se academias e o grego antigo é descoberto, passa a ser ensinado. Os ignorantes latinos começam a descobrir a igreja antiga e percebem o quanto se afastaram dela. O lema dos humanistas passa a ser Ad fontes. As escrituras e os pais da igreja antiga, se possível depurados do entulho medieval. Erasmus publica um Novo Testamento grego, a partir do qual Lutero faz sua tradução para o alemão. O motivo? A Vulgata, tradução latina coordenada por Jerônimo no século V era a única versão aceita pela igreja. Mas continha erros grosseiros.

Lorenzo Valla, secretário do papa começou a estudar documentos oficiais para determinar sua autenticidade. Demonstrando a falsidade da Doação de Constantino inaugurou a crítica documental. Disciplina fundamental para o surgimento da história como disciplina acadêmica no século XIX.

A mesma disciplina histórica que começou a ser aplicada pelos luteranos à crítica das Sagradas Escrituras, demonstrando que não podiam ser aceitas como documento histórico confiável, pelo menos não na medida em que vinham sendo usadas pela tradição. Começaram a ser determinados os períodos de confecção dos livros bíblicos e as autorias, processo até hoje em andamento. A veracidade factual dos milagres foi contestada.

Hoje a Bíblia já pode ser lida como o que realmente é. Uma coleção de livros de testemunho, escritos em diferentes épocas, sem uma versão oficial, sem autores definidos e sem qualquer pretensão factual ou científica. Para ser lido como literatura. Para ser tido como inspiração.

No século XX uns teimosos sulistas dos EUA, e os campos missionários sob sua influência erigiram uma coleção de fundamentos inegáveis da fé. Entre os quais o nascimento virginal, a divindade e a morte e a ressureição de Cristo. Os mesmos dogmas que a igreja romana também sustenta com base na autoridade não das Escrituras, mas de uma pretensa magistratura derivada do apóstolo Pedro. Mas os fundamentalistas acrescentaram mais uma novidade - a iminência da volta de Cristo, que passou a ser também o principal tema de seus livros e de sua pregação radical e intolerante.

Fica difícil celebrar o Cristo vivo, quando tanto entulho institucional já se sobrepôs ao signficado de renovação que ele trouxe há dois mil anos. Tem muita gente tentando fazer isso - jutemo-nos a eles.


P.S. Sobre os modos de ler a Bíblia recomendo, de novo, o texto na Trilha: Reticências. Também já está lá uma leitura da Páscoa: As três páscoas.

P.S.2 De certa forma este texto aqui pode ser uma resposta a outro do Catatau: A páscoa e a radicalidade do cristão.

P.S.3 No Soda cáustica, algo sobre a morbidez com que se celebra a paixão de Cristo: A acusação.

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quinta-feira, 2 de abril de 2009

O mesmo amor a mesma chuva - e o caso da imprensa argentina

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Li um post do Idelber Avelar sobre o projeto de lei que muda a regulmantação da atividade da imprensa na Argentina e me lembrei de um filme que já assisti faz um tempo: O mesmo amor a mesma chuva.

O filme já tem uma bela resenha no antigo blog do Maurício Santoro. O diretor, Juan José Campanella, estudou cinema nos EUA, dirigiu séries de TV e acertou a mão no cinema principalmente com O filho da noiva (2001), com o mesmo Ricardo Darín no papel principal.

O mesmo amor a mesma chuva, de 1999, não é, no meu entender, tão bom quanto O filho da noiva, que vi no cinema e que fez merecido sucesso (se você ainda não viu não perca tempo). Mas é um filme muito interessante e bem feito, que valeu muito a pena de ser assistido.

As relações humanas são muito bem exploradas no filme (acho que isso é a qualidade que mais me atrai em qualquer filme, talvez junto com a qualidade estética de fotografia, direção, trilha sonora, roteiro, etc.). Não apenas a paixão improvável dos personagens principais, mas, especialmente, as relações de trabalho dentro de um órgão de imprensa argentino - fictício, que fique bem claro.

Mas realístico. É na Argentina, mas podia ser no Brasil ou em qualquer outro lugar. Muito instrutivo para quem quer saber com quantos paus se faz uma notícia ou uma crítica de arte em jornais e revistas.

E é por isso que a leitura do post do Idelber me remeteu ao filme...



P.S. Não achei um trailler do filme, mas tem muitos trechos dele no youtube, para quem tiver curiosidade.

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quarta-feira, 1 de abril de 2009

Reavaliando o legado da ditadura

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Acompanhei de longe a polêmica sobre o papel ridículo da Folha de São Paulo no episódio da "ditabranda".

Há importantes setores da classe média brasileira que são saudosos do tempo dos milicos. Não é difícil identificar nesta turma os leitores da Veja. O episódio da Folha indica que ela tem percepção de que são também uma parte importante do seu público (a Folha já não é como nos anos 1980 e 1990, quando se consolidou como um jornal em favor da democratização). Aliás, acompanhar, como eu faço, esporadicamente estes dois veículos é constatar a perda de massa encefálica deste estrato social no Brasil.

Nos últimos dias duas matérias interessantes reavaliando o legado da "ditadura". (Coloco o termo entre aspas devido à impropriedade sociológica do termo para um regime que teve eleições e troca de governantes, economia de mercado e funcionamento normal do judiciário - na verdade continuamos quase tão arbitrários como naquela época, e os figurões da política são quase os mesmos até hoje.)

Recomendo as duas:

Os anos de proibir são de ontem. Matéria de Flávio Tavares para o Zero Hora, repercutida pelo Luis Nassif. Demonstra a origem da corrupção endêmica nas práticas políticas do regime militar. E comenta os tímidos esforços para superar a impunidade nos extratos superiores da política e das finanças.

"Milagre" pós-64 concentrou renda em período de expansão econômica
. Matéria da Agência Brasil feita com acadêmicos e estatísticos que analisam estudos mostrando que o fantástico crescimento do período militar foi apropriado por setores da elite e da classe média. Aos pobres sobrou apenas porrada.

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No tempo da "ficção científica" - o serviço doméstico

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Um dia desses li no Ágora com dazibao no meio um post chamado Para além do meu campo semântico. Tudo que o Ricardo fez foi postar uma charge do Quino que mostra um mendigo ganhando uma polpuda esmola para comer num restaurante de luxo, mas preferindo gastar a quantia em hambúrgueres. O mais interessante é a proverbial caixa de comentários que este post suscitou.

A questão de fundo é a incapacidade humana de compreender conceitos com os quais não está acostumado a lidar. Que valor tem a alta gastronomia para quem não tem papilas capazes de perceber suas nuances? (Na verdade não tem nada a ver com as papilas, mas com o processamento da informação gustativa no cérebro.)


Tá.

E o que isso tem a ver com "ficção científica"?


Acontece que achei outro dia, no Favoritos, uma dica do site Paleo-future, dedicado a mostrar as antigas visões de como seria o futuro. Entre as muitas coisas interessantes que se pode encontrar lá, me chamou a atenção uma cozinha do futuro, cheia de apetrechos para facilitar o trabalho de uma "dona de casa".



Em 1943 os gringos eram capazes de imaginar apetrechos de cozinha para facilitar o serviço doméstico. Provavelmente para que as mulheres pudessem desempenhar melhor a dupla jornada que a guerra lhes impôs: enquanto os maridos foram lutar na Europa, elas assumiram os postos nas fábricas, lojas e escritórios, e continuaram desempenhando os serviços domésticos.

Mas acho que ninguém imaginava ainda uma cozinha sem "dona de casa".

Seria uma coisa muito além do campo semântico...

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