segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Na senzala uma flor

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Já publiquei isso antes aqui no blog, mas como tinha sido em três partes sem os devidos links de ligação, acho que alguns leitores saíram prejudicados. Agora conserto a besteira.


SLENES, Robert. Na senzala uma flor. Esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil. Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.


Eu li este livro como parte da minha preparação para o exame de seleção do mestrado em História da UFPR, em 2001. Àquela época o livro estava esgotado, ignoro se teve nova edição.

Trata-se de um livro já clássico, que originou uma série de debates na historiografia sobre a escravidão. O historiador Jacob Gorender, militante do partido comunista, foi o que mais se opôs à tese de Slenes, considerando que ela contribuía para “suavizar” a escravidão. Historiadores que pesquisam a escravidão se juntaram a Slenes e fizeram severas críticas a Gorender, pelo fato de ele nunca ter pesquisado diretamente com fontes em arquivos.

À parte as polêmicas que todas as novas interpretações costumam causar em relação a interpretações estabelecidas, trabalhos como o de Slenes têm servido para trazer uma nova concepção da cultura brasileira, especialmente no que toca à influência das classes populares, ainda considervelmente subdimensionada.

Faço aqui no blog uma resenha em três partes, seguindo o roteiro de estudo que fiz quando li o livro para a prova do mestrado:



A família escrava


Um viajante francês do século XIX afirma não ter visto nenhuma flor nas senzalas brasileiras, julgando por isso não haver esperanças nem recordações, e até mesmo negava a exsitência da família no meio dos escravos.

O título da obra de Slenes é a negação da afirmativa deste viajante. Através de sua pesquisa o autor comprova a existência da família escrava, formada por marido e mulher, com filhos morando com o casal, que possui sua própria casa e até uma atividade econômica independente (caça e pesca, criação de animais, cultivo de roça, trabalho assalariado nos dias de folga, artesanato), que lhe permite economizar para melhorar o padrão de vida e até comprar sua liberdade em alguns casos.

Slenes também compara as habitações dos escravos com as da África Central (origem da maioria deles, demonstrando as permanências culturais africanas na arquitetura das habitações e no hábito de ter sempre dentro delas um fogo aceso. Para o autor, é este fogo aceso a flor que o viajante europeu não foi capaz de enxergar nas senzalas.

Com este estudo, Slenes demonstrou que a escravidão no Brasil não pode ser vista apenas como um imposição dos senhores, mas construiu-se um sistema de relações negociado. Os escravos conquistaram um espaço familiar que, apesar de precário e instável, não foi irrelevante. Em meio aos sofrimentos da escravidão, os negros conseguiram formar famílias, nas quais cultivaram suas esperanças (refletidas na sua dedicação à economia doméstica) e recordações (a manutenção e adaptação de importantes traços culturais comuns às sociedades bantus da região do Congo e Angola).



Arquivos e fontes sobre a escravidão


Slenes trabalhou na sua pesquisa com fontes primárias e secundárias. As primárias foram as que ele usou para traçar os padrões demográficos dos escravos do Sudeste do Brasil no século XIX. São registros de casamento e batismo de escravos, inventários pós-morte de fazendeiros (que incluíam a relação de escravos – arrolados entre os “bens” do senhor), processos-crime, anúncios de fuga de escravos nos jornais. Com estas fontes, pesquisadas em Campinas, Sorocaba e Vassouras (RJ), ele deduz percentagens de africanos entre os escravos (haviam os trazidos da África e os nascidos aqui), de homens, de casados, taxas de mortalidade, expectativa de vida, etc.

Comparando os dados obtidos com os resultados de outros pesquisadores para outros municípios do sudeste no mesmo período, o autor faz generalizações possíveis para obter um padrão regional. Com isto ele comprovou a existência de uma família escrava, composta de pai, mãe e filhos.

Outro tipo de fonte primária são os relatos de viajantes europeus, recordações de fazendeiros e imagens literárias da época (romances). Dessas fontes o autor tira a visão branca sobre a escravidão. Comparando com os resultados dos estudos demográficos, Slenes demonstra o quanto esta visão branca é etnocêntrica, distorcida e pouco confiável (como aliás qualquer fonte histórica – que deve ser tratada com o devido treino e muitos cuidados). Uma análise mais profunda pode ler nas entrelinhas informações importantes sobre a cultura negra: padrão de construção das senzalas, alimentação, economia doméstica.

Comparando estas observações de viajantes com estudos etnológicos de sociedades centro-africanas (fontes secundárias), Slenes traçou um panorama da cultura escrava, demonstrando as permanências culturais na família cativa e suas estratégias de resistência.



A história dos vencidos


A partir da década de 1970 houve uma explosão de estudos de historiadores dedicados à vida e à cultura das classes subalternas, dos trabalhadores pobres: operários no caso europeu e escravos no caso do continente americano. Estes trabalhadores foram sempre a classe inferiorizada na estrutura social, e não conseguiram sequer perpetuar sua memória pela produção de documentos escritos. Por causa disso, eles foram quase sempre classes “invisíveis” para o historiador.

O que mudou este estado de “cegueira” em relação às classes trabalhadoras, e causou a explosão de estudos sobre história operária e história da escravidão, foi o trabalho seminal do historiador inglês E. P. Thompson. Em meados da década de 1960 ele publicou sua Formação da classe operária inglesa, em 3 volumes. Escreverei sobre esta obra em outro post, mas devo dizer aqui que foi Thompson começou uma nova metodologia, qual seja ler a história dos vencidos nos documentos produzidos pelos vencedores.

Foi isso que fez Slenes, seguindo a tradição metodológica inaugurada por Thompson no estudo dos operários ingleses do início do século XIX.. Ler processos criminais onde os escravos depõem como réus, inventários de fazendeiros onde eles aparecem como mercadorias, documentos de batismo e casamento onde eles aparecem por acaso, e relatos de viajantes onde os escravos despertam sentimentos mistos de compaixão e desprezo, lançados de um olhar que se julga culturalmente superior. Ler nestes documentos a visão do escravo, que não está ali, precisa ser descoberta nas entrelinhas. Tudo isso para compensar a completa ausência de documentos ou memórias produzidos pelos próprios escravos.

O estudo de Slenes, bem como os trabalhos de outros historiadores que seguiram esta mesma tradição historiográfica, levou a uma mudança de paradigma. Os trabalhadores pobres (ou os escravos) deixaram de ser vistos como seres passivos, e passaram a ser vistos como agentes históricos importantes, com uma cultura própria, que se chocaram e interagiram com outros agentes e com a cultura dominante.

Além desta corrente thompsoniana de estudo das classes trabalhadoras, o estudo de Slenes também segue uma outra tradição historiográfica originada na Nova História praticada pelos franceses: a demografia histórica. Trata-se da reconstituição de padrões populacionais, organização das famílias, estratégias reprodutivas, espectativa de vida. Esta é uma abordagem quantitativa, obtida através da chamada história serial – aquela que se faz pela coleta de dados de mesmo padrão, num mesmo arquivo, de uma mesma localidade, para diferentes datas. Este tipo de estudo permite traçar a evolução da população local por um determinado período de tempo. (Não é à toa que esta abordagem surgiu na França – lá existem séries de documentos eclesiásticos sobre nascimentos, batismos e sepultamentos com séries confiáveis que remontam ao século XII!)

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2 comentários:

Anônimo disse...

Andre já li quase todos os trabalhos do professor Slenes, sua resenha está ótima, foi a mais completa que achei, porem gostaria de ler o livro. Sabe com posso encontra-lo?
Fatima.

André Egg disse...

Fátima,

quando estudei o livro ele ja estava esgotado na editora, e continua até hoje.

Tenho uma fotocópia, se quiser te mando.

Veja meu endereço de e-mail no canto superior esquerdo do blog.