quinta-feira, 17 de abril de 2008

Judeus, cristãos e muçulmanos: quem é intolerante?

Nos últimos tempos, me engalfinhei aqui no blog num debate com o André Tavares por causa do conflito Israel Palestina. Escrevi um texto a propósito da discussão entre dois dos meus blogs favoritos, e acabei ganhando um debatedor e mais um blog favorito. Os meus textos estão aqui e aqui, e nos comentários estão as considerações do André Tavares.

Como o tema é muito relevante, e envolve questões históricas muito interessantes, vou prolongar um pouco essa discussão. Em outro comentário, desta vez respondendo um comentário meu no seu blog, André Tavares afirmou:

E não foram exatamente os cruzados que “perturbaram” o Oriente Médio, os muçulmanos já haviam invadido a península ibérica, tomado todo o norte da África (onde havia importantes centros cristãos como Alexandria, Cartago e Hipona) e ameaçavam Constantinopla e a Europa - era um real perigo para o Cristianismo que se concretizou com os otomanos. A iniciativa da expansão pelas armas, meu caro, é do Islam. Tomar Jerusalém e os lugares santos para os cristãos era um símbolo de resistência (veja bem que não estou negando as atrocidades e crimes dos cruzados) cristã.

A frase dele é a propósito de atribuir a quem a iniciativa pela violência no Oriente Médio. Acho que são questões bem diferentes, pois a violência atual tem mais a ver com as interferências colonialistas européias na região, desde fins do século XIX. Especificamente, a atual conjuntura regional decorre da ocupação da Palestina por Inglaterra e França após a derrocada do Império Otomano por ocasião da Primeira Guerra Mundial. A presença do Estado judeu na Palestina é também uma conseqüência direta da perseguição sofrida pelos judeus na Europa.

Além destas questões mais recentes, nossa discussão enveredou por um passado mais remoto. Eu atribuí o início da violência aos cruzados dos séculos XI a XIII, causando ressentimentos e vingança da parte dos muçulmanos. Por isso o André Tavares escreveu a frase acima, afirmando que a violência partiu do Islã na conquista da Palestina e Norte da África nos séculos VII e VIII.

Sobre esta questão, é preciso dizer que as rápidas conquistas militares dos muçulmanos não podem ser explicadas apenas pela lógica da violência e da supremacia militar. Trata-se sobretudo de uma conquista cultural, de uma região em crise – sem um Estado capaz de administra-la eficazmente. Neste pormenor, eu compararia com as conquistas que o império romano fez na Europa nos últimos séculos da era pré-cristã, ou como as conquistas de Alexandre no século IV a.C. Ou mesmo com as “invasões” germânicas ao império romano no século V da era cristã.

Trataram-se de uma vitórias culturais, muito mais do que militares. Não houve destruição em massa ou escravização dos povos subjugados. Nem houve tentativa de revolta dos dominados. Porque os dominadores mantiveram as estruturas políticas, culturais e religiosas pré-existentes, não fizeram grandes mudanças na estrutura populacional, mas apenas substituição nas elites governamentais.

Por isso eu diria que é incorreto atribuir a iniciativa da violência na região às primeiras conquistas muçulmanas. Os muçulmanos aproveitaram um vácuo de poder deixado pelo decadente império bizantino, e respeitaram sempre a diversidade religiosa pré-existente. Cristãos e judeus sempre foram bem tolerados no mundo islâmico, apesar de terem restrições jurídicas e econômicas. Os cristãos é que, a partir de Agostinho, passaram a negar aos não-cristãos e aos não suficientemente ortodoxos (taxados como hereges) o próprio direito à vida. Pergunte a um judeu do século VIII em diante aonde ele preferiria morar – na Europa cristã ou nos territórios muçulmanos? Pergunte aos cristãos monofisistas de Egito, Síria, Pérsia e Armênia o que eles preferiam – se o domínio da ortodoxia bizantina ou os governos muçulmanos.

Além do mais, não há registros de que os invasores muçulmanos tenham promovidos massacres e chacinas de populações inteiras como fizeram abundantemente os cruzados. Aliás, os judeus precisam lembrar que os cruzados começaram impetrando massacres aos judeus na Europa, como “exercício” para invadir a Palestina. Nos territórios bizantinos, os cruzados massacraram cristãos orotodoxos-gregos. E finalmente, terminaram seu rastro de sangue dizimando populações inteiras de cidades muçulmanas. Deixaram a marca indelével da violência e do ódio, coisa que não existia no período muçulmano.

Também é válido lembrar que o Norte da África já era palco de disputas há séculos. Tinha sido ocupado pelos colonizadores fenícios, que fundaram Cartago alguns séculos antes de Cristo. Foi invadida pelos romanos após a vitória nas guerras púnicas. Nos tempo de Agostinho, existia um profundo rancor das populações locais contra a ocupação romana, o que se traduziu nas revoltas donatistas – estudadas muitas vezes como mera heresia teológica. No século V os Vândalos invadiram e assolaram a região impondo o cristianismo ariano e perseguindo e matando o clero niceno. No século VI a região foi conquistada pelos bizantinos do imperador Justiniano. De modo que os muçulmanos no século VII/VIII não foram os iniciadores da violência no Norte da África. Nem tampouco ameaçaram algo que se pudesse considerar como um equilíbrio cristão na região. Vale lembrar que os primeiros a perpetrar violência na região foram os cristãos no século IV, quando começaram a perseguir os pagãos, matando-os e destruindo seus templos. Os cristãos chegaram mesmo a atear fogo à maior biblioteca da Antigüidade, em Alexandria, para impedir o contágio das idéias pagãs.

André Tavares também sugere que o Islã seja uma religião violenta por natureza, e que isso está claramente expresso no Corão. Ora, os textos sagrados judeus são plenos de violências, e mostram um Deus vingativo e impetrador de massacres e genocídios. A mesma lógica da violência religiosa perpassou o cristianismo, apesar de não haver apologia à violência no Novo Testamento. Houve até teólogos como Márciom, que no segundo século considerou que o Deus cristão não era o mesmo dos judeus por conta da violência dos textos do chamado Antigo Testamento. Obviamente as idéias de Márciom foram violentamente suprimidas do meio cristão...

Sobre a questão de ser o Islã uma religião violenta por definição, remeto a alguns textos do blog do Pedro Dória, onde isso está bem explicado.

Neste post Pedro Dória explica por que é incorreto classificar o islã como violento e intolerante. E olha que o Pedro Doria é judeu...

Aqui, também no blog do Pedro Doria, trecho de uma entrevista da historiadora Karen Armstrong, a propósito de seu livro sobre o budismo. Inclui a afirmação de que o monoteísmo tem a tendência para a intolerância, por propor o conceito de Deus único e verdade única. Isso inclui judeus, cristãos e muçulmanos. Daí para matar os que não concordam é um pequeno pulo...

Como se vê, intolerância e imposição violenta de “verdades” religiosas não é característica muçulmana. É característica do judaísmo, aprendida pelo cristianismo (com certeza não tem nada a ver com o exemplo do Cristo) e depois imitada pelo Islã.

Por isso, acho que culpar os muçulmanos pela violência no oriente médio não ajuda em nada a resolver a situação. É, isso sim, argumento de quem se beneficia com a escalada da violência e pretende perpetuá-la. O caminho para a paz passa pelo diálogo, e pela capacidade de compreender o outro. Sobre isso, temos o grande exemplo dado pelo judaísmo na figura de um Martin Buber, por exemplo. Sobre ele, falo em outra oportunidade...

terça-feira, 15 de abril de 2008

Zuzu Angel

Uma jovem mãe, separada do marido, com três filhos pequenos para criar. Costura para sustentar a família, mas aos poucos torna-se uma grande estilista de sucesso internacional.

Enquanto isso, durante os “anos de chumbo” do regime militar, seu filho Stuart entra no movimento estudantil e, em seguida, na luta armada e na clandestinidade. Participa do grupo de Carlos Lamarca (o filme não menciona a sigla, mas que eu me lembre é VPR – Vanguarda Popular Revolucionária), termina preso, torturado, morto e tem o corpo jogado ao mar.

Em torno desta tragédia pessoal (e de toda um geração), se passa a narrativa do filme. A luta política de uma mãe para encontrar o filho, garantir sua integridade. Depois de receber a notícia de sua morte, a luta para ter o direito de sepultá-lo e para ver condenados os assassinos de Estado.

O tema é tão melindroso, e ao mesmo tempo rico, que permite ótimos trabalhos artísticos. Lembro de outros que já ficaram clássicos sobre a luta armada no cinema brasileiro: O que é isso companheiro e Lamarca, o capitão da guerrilha. Zuzu Angel está à altura de ambos. É grande cinema, como já estamos ficando acostumados a ver sendo feito no Brasil da última década. É um filme digno da memória de uma mulher de fibra, e digno da luta de uma geração por justiça social e democracia.

O drama de Zuzu é embalado pela belíssima trilha sonora de Cristóvão Bastos, um dos grandes músicos brasileiros, por muito tempo arranjador e líder da banda de Chico Buarque. Imagino que 80 por cento do clima psicológico criado pelo filme é de responsabilidade da trilha sonora.

Enfim, é cinema profissional. Cenários, figurinos, atores, fotografia, direção – tudo de alto nível. E aquela qualidade que só o cinema nacional proporciona: o reconhecer-se na tela, nas paisagens, nas falas dos personagens, nas histórias vividas e narradas.

Mas como o filme trata de um tema histórico de absoluta relevância, não posso deixar de fazer uma leitura da história do Brasil a partir dos eventos que o filme traz. Me parece que há uma clara dicotomia neste filme, e em todos que tratam da luta armada contra o regime militar. Como não existe cineasta disposto a elogiar os milicos, a história será sempre uma glorificação dos jovens quixotescos que tentaram lutar por justiça social, fazer a revolução brasileira.

Mas nesta história não há tanta clareza sobre quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Acredito que o cinema brasileiro vai dar mostras de amadurecimento quando puder tratar este tema sem glamourizar a guerrilha e demonizar a “ditadura”. Coloco o termo entre aspas porque sociologicamente incorreto. Não houve ditadura. Houve governantes militares, com congresso funcionando, eleições (não sei se eram menos livres que as que temos hoje), judiciário (era tão conservador como continua sendo) e, obviamente, amplo apoio popular.

Por outro lado, a luta armada era uma dissidência minoritária da esquerda no país. Uma estratégia política burra que serviu para justificar o endurecimento do regime militar, suas arbitrariedades e torturas. Afinal, o “perigo vermelho” era uma ameaça real, intolerável para as classes dominantes do Brasil.

Não deixaria de ser um exercício útil pensar como seria o regime político caso os stalinistas do PCdoB (e de outros grupelhos dissidentes) tivessem tomado o poder do Estado. Para os que tentam vender a imagem de uma esquerda feita de jovens idealistas seria talvez o mundo da justiça e da solução dos problemas sociais do país. Os exemplos que embalavam os sonhos destes jovens (União Soviética, China e Cuba) talvez sejam um bom modelo para reflexão.

Pergunto: quando o cinema nacional vai aprender com Caetano Veloso e outros artistas da época, e colocar a juventude comunista no merecido lugar histórico? Afinal, idealizar este tipo de passado não traz grandes benefícios para nosso futuro.