quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Sobre os símbolos do natal

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O natal é a festa mais importante dos cristãos.

Sua simbologia reflete muito do que o cristianismo é. A forma como ele é celebrado revela o que somos e o que não somos como cristãos.

Há muita controvérsia sobre o que seja o verdadeiro cristianismo. Cada um dos milhares de grupos e seitas cristãos tem sua própria definição da fé, e as doutrinas e dogmas a eles relacionados. Sempre excludentes. Se a minha fé é a única certa, por exclusão as outras todas estão erradas. E as divisões do cristianismo tornam-se como brigas de vizinhos.

Se não há acordo sobre as definições da fé e cada um tem suas certezas, parece-me que uma coisa é certa: cristão deriva de Cristo. E Cristo foi uma pessoa sobre a qual se criaram todos os tipos de controvérsia exceto uma - ele viveu na Palestina há cerca de 2000 anos, era um judeu não ligado aos grupos religiosos dominantes e foi um pregador que teve muitos seguidores.

Justamente a esses seguidores é que se atribuiu a pecha de "cristãos". Pecha sim. Porque não era nada digno ser chamado assim naquele tempo. O Cristo era um homem mal-visto. Tinha sido crucificado como um criminoso pelos romanos, após ser incitado pelos saduceus por heresia.

A vergonha de ser seguidor de Cristo era tanta que Pedro, um dos discípulos mais próximos negou 3 vezes que o conhecesse.

Esse Cristo não tinha posses. Pregava o amor e a justiça. Ensinava coisas como auto-negação e sacrifício em prol do próximo. Dar a outra face. Servir ao invés de ser servido. Encontrar Deus nas coisas simples - nas flores, nos passarinhos, nas crianças e não nos templos. Adorar ao Senhor em espírito, e não em Jerusalém. Ter o coração voltado para Deus era mais importante do que guardar os preceitos da religião.

Bem, porque estou dizendo tudo isso?

Ser cristão deveria incluir minimamente o empenho em seguir este exemplo.

Mas não é assim.

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Um anjo anunciou a Maria que dela nasceria o salvador. Um bebê numa manjedoura. Reis e pastores vêm homenagear o filho de Davi. Uma estrela marca o local onde encontrá-lo. Um coro de anjos celebra o momento ímpar.

Os evangelhos foram escritos pelos seguidores de Jesus. Entre outras coisas, para provar que ele era o filho de Deus, que deveria ser adorado. Acredita-se que o mais antigo dos evangelhos seja o de Marcos, escrito por volta do ano 70 (depois das cartas de Paulo). O último deve ter sido o de João, escrito já no segundo século.

Nos séculos em que ser chamado cristão deixou de ser uma coisa pejorativa, escolheu-se uma data para celebrar o nascimento do agora considerado menino-deus. Nada melhor do que fazer a celebração no dia em que o culto mais popular do império romano - o mitraísmo - celebrava o nascimento de Mitra, o sol invicto. Já que todos os cultos pagãos seriam suprimidos e perseguidos para a implantação da agora religião oficial do império, melhor contemplar os costumes antigos do que tentar suprimi-los totalmente.

Assim como o menino ganhou presentes, damos presentes uns aos outros nesta data.

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Como pensar sobre esta incômoda figura do passado?

Era um profeta. Um homem que abalou as estruturas religiosas do judaísmo. Seus seguidores espalharam-se como epidemia pelas regiões urbanas do império romano. Praticavam uma fé radical que considerava todos iguais perante Deus: não havia diferença entre homem e mulher, judeu e gentio, escravo e livre.

Quando eram perseguidos e mortos, o sangue dos mártires se tornava a semente da fé. Os preciosos evangelhos que traziam a memória do Cristo passaram a ser guardados com as próprias vidas, e lidos em reuniões secretas em desertos, bosques e catacumbas - geralmente de madrugada.

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No século IV e V, isto se tornou passado. O império percebeu que o cristianismo não poderia ser visto mais como uma fé radical e uma ameaça. O abandono dos deuses tradicionais que haviam feito a glória de Roma já não era mais a causa principal da derrocada do outrora glorioso império ocidental.

A tradição da sucessão apostólica e a concomitante autoridade geográfica dos bispos num sistema hoje conhecido como "bispado monárquico" levou a atrair o império para a nova fé.

A cristianização do império, ou a romanização do cristianismo levou a uma sobrevida de mais 1000 anos às estruturas político-culturais do Mediterrâneo greco-romano. A fé cristã e a política romana sobreviveram aos afluxos de germanos (godos, vândalos, suevos, francos, lombardos) de nórdicos (vinkings ou normandos) e de eslavos (húngaros, búlgaros, russos). Todos foram seduzidos pela magnificência dos templos, das vestes sacerdotais, do mistério das liturgias em latim, das doutrinas mirabolantes nas quais era preciso crer sem entender.

O cristianismo tornou-se, até as reformas do século XVI, o esteio da ordem e da segurança político-militar da Europa.

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Depois disso ainda há lugar para o galileu?

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Temos a devoção pelo menino-deus natalino. Temos a mórbida devoção pascal pela paixão - morte e ressurreição (tão bem retratada no doentio filme de Mel Gibson). Temos o filho-de-deus ressurreto, que "mora em nosso coração", que nos salva de nossos pecados e da danação eterna.

E o exemplo da vida de Cristo. O que fazemos com ele?

Melhor não falar nisso. Pra que estragar uma festa tão bonita...

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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Como Saramago vê o Deus dos judeus - a propósito da questão de Gaza

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Saramago é comunista. Presume-se que seja ateu, como todo bom comunista. Escreveu um livro interessante sobre o homem Jesus Cristo, que li uns pedaços (está na fila para ser lido inteiro). O livro me chama a atenção por pretender uma versão da vida Cristo sem os milagres da narrativa dos evangelhos e sem os dogmas do cristianismo posterior ao terceiro século (coisas como a divindade de Cristo, seu nascimento virginal, sua morte vicária e sua ressurreição).

Agora há pouco o escritor desabafou em seu blog contra as arbitrariedades que o Estado de Israel impinge aos refugiados palestinos em Gaza, que já estão sem comida enquanto os caminhões de mantimentos da ONU são impedidos de entrar.

"Compreendemos melhor o deus bíblico quando conhecemos os seus seguidores. Jeová, ou Javé, ou como se lhe chame, é um deus rancoroso e feroz que os israelitas mantêm permanentemente actualizado."

Está aí o Deus feito à imagem e semelhança do homem. Boa parte do que nós cristãos chamamos de Antigo Testamento descreve peripécias (nem sempre historicamente verídicas) de um povo com seus reis e exércitos. Protegido de um Deus que lhes dá vitórias militares e manda que pratiquem genocídio contra os infiéis.

Obviamente não é só isso que faz o Deus do Antigo Testamento. Mas isso certamente lhe mancha a reputação. A ponto de grupos cristão recusarem-se a aceitar o Antigo Testamento como parte do cânon. Esses marcionitas (porque seguidores de Márciom) foram devidamente silenciados para a posteridade.

E continuamos a propagar a idéia de um Deus que é "Senhor dos exércitos", pelo qual matamos e morremos. Sejamos judeus, católicos romanos ou protestantes. De Israel, ou dos Estados Unidos.

Saramago simplifica muito a questão, posto que no Estado judeu a opressão sobre os palestinos não é de matriz religiosa - aliás, ortodoxos sempre tiveram pouco peso político em Israel, e os socialistas secularistas são a base da tradição política do jovem Estado.

Poderia o Saramago também comentar algo a respeito do Deus dos muçulmanos e informar que não há inocentes no conflito. Radicais violentos estão dos dois lados, sempre derrotando quem se dispõe a conversar. Sejam ateus bondosos, como o escritor português, ou religiosos que depositam sua fé num Deus que é amor e justiça e que criou os homens iguais para viverem em paz.

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segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Refugiados em sua própria terra

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Este post é parte de uma blogagem coletiva, promovida pelo portal Blog Catalog - o tema é Unidos para reunir os refugiados. (Tem uma chamada aí do lado)

A proposta era de buscar informação sobre refugiados. O portal deu vários links para páginas em inglês de organismos que trabalham com refugiados pelo mundo.

Não li nada disso por falta de tempo. Certamente, se eu fosse um blogueiro sueco, suíço, finlandês ou canadense, certamente procuraria um organismo que trabalha com refugiados no Sudão ou na Somália, ou na Palestina, ou em outros países com problemas crônicos de refugiados.

Mas não vivo num país com altos índices de desenvolvimento humano e coesão social. Vivo num país de extremos, onde a riqueza e a tecnologia convivem com o atraso, a miséria e a ignorância. Num país em estado crônico de anomia social.

Um país onde abundam os refugiados em sua própria terra.

Desde nosso processo de colonização, nosso sistema econômico foi baseado no latifúndio dedicado à monocultura exportadora. Os senhores da terra mandam e desmandam, sobre agregados e escravos. O povo do meu país é feito de gente que não tem seu lugar.

Gente que não tem terra. Filhos de quem nunca teve terra. Gente que migrou de uma região para outra do país, procurando o coronel mais magnânimo, que permitisse o uso de uma pequena fatia de suas terra para culturas de subsistência. Gente que nunca se apegou a terra por que podia ser despejado do dia para a noite, mesmo que isso significasse perder as colheitas maduras.

Quem quiser saber um pouco do cotidiano deste trabalhador desgraçado leia o romance Seara vermelha de Jorge Amado.

O livro conta a saga de famílias que, cansadas de migrar de uma terra à outra, resolveram migrar para o mundo das novas oportunidades: sumpaulo. A metrópole industrial. Mas poderia ser também Rio de Janeiro. Ou Porto Alegre, ou Santos. Ou Belo Horizonte ou Curitiba (a partir da década de 1970). Ou (mais recentemente) Brasília, Salvador, Recife, Fortaleza.

De refugiados em terras que nunca foram nem seriam suas, os brasileiros foram ser refugiados em cidades que não são nem nunca serão suas.

Sem o direito à moradia digna, acumulam-se em subúrbios fétidos onde grassa a violência. Onde diariamente matamos nossa juventude, sem esperança e sem futuro. Onde ninguém é dono de seu canto. Onde não existe rede de esgoto ou água tratada. Onde a energia elétrica é clandestina.

Ou em área de encosta ou em domínio de rio. Esperando para ver se sobrevive à próxima enchente ou ao próximo desabamento.

Em casas unidas umas às outras, onde os incêndios se alastram como se queimassem palha seca.

Onde o Estado não chega. Não há escola ou hospital. Não há oportunidade de cultura ou lazer.

Onde os filhos dos trabalhadores e das trabalhadoras ficam com vizinhos ou irmãos mais velhos porque não há creches.

Onde quem consegue passar dos 18 anos já é velho.

Refugiados em sua própria terra. Habitantes de um país que não é nem nunca será seu. Um país onde os homens bons crescem pisando nos outros. Onde quem pode manda e quem tem juízo obedece. Onde a lei é para os fracos. O país do "sabe com quem está falando?" - como já bem estudou Roberto DaMatta.

Um país onde um operário nordestino pode até chegar a ser presidente. Mas só se for para deixar os tubarões da indústria paulista ou do mercado financeiro continuarem mandando. E recebendo o pagamento dos juros mais altos do planeta.

Um país onde as classes média e alta interditam qualquer debate político que inclua projeto de distribuição de riqueza. Ou distribuição de terra. Ou distribuição de conhecimento. Aqui não se pode falar em distribuição. Só em acumulação.

Em quem não acumula nada é porque é burro ou incompetente ou preguiçoso.

Mas sempre nos resta o consolo de que tem país pior do que o nosso. Aqui na vizinhança do continente. Ou na África ou na Ásia longínquos.

E continuamos sendo um país não de cidadãos, mas de refugiados em sua própria terra.

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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

José Miguel Wisnik - o futebol como linguagem

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Terça-feira à noite.

Pausa na cobertura das eleições, na redação do relatório de qualificação para o doutorado, na correria do dia-a-dia. Tudo para ter a experiência imperdível de assistir José Miguel Wisnik palestrando. E depois tomar umas cachaças com o Artur Freitas e o Fábio Poletto.

A palestra fez parte de um simpósio sobre 1958, do grupo de pesquisa Futebol e Sociedade. (A página do grupo vale muito a pena ser visitada, com links bibliografia, banco de teses e quetais.)

O convite para Wisnik palestrar veio a partir de seu livro Veneno remédio. O futebol e o Brasil. E de tudo de muito bom que já publicou sobre música popular. O tema era, curiosamente, futebol e música popular.

Wisnik apresentou o futebol como uma linguagem não verbal, assim como a música. Aliás, a única expressão da cultura de massas que não é norte-americana. Os norte-americanos criaram um mundo à própria imagem e semelhança, onde veste-se blue jeans e T-shirt, come-se fast food, faz-se compras em shopping center, assiste-se cinema norte-americano e houve-se música pop norte-americana. Mas ninguém exceto os norte-americanos, empolga-se com basquete, beisebol ou futebol americano.

O futebol destoa do pragmatismo e o produtivismo que marcam a sociedade norte-americana. Seus esportes caracterizam-se por divisões claras do espaço, tempos certos para cada equipe ficar com a bola, objetivos claros a serem alcançados e contagem de pontos decorrente de tudo que se "produz" no jogo. De tal modo que quem produz mais, é mais eficaz, soma mais pontos e ganha o jogo.

Não cabe na mentalidade norte-americana um esporte onde a bola pode ser tomada a qualquer momento, pode-se ir para frente ou para trás, não existe local certo do campo para cada jogador e - heresia das heresias - pode-se jgar 90 minutos e o jogo terminar zero a zero na contagem do placar. "Mas como, dirá um norte-americano - jogaram 90 minutos e não produziram nada?"

O futebol seria, assim, o triunfo do prazer. Um jogo onde o prazer de jogar é maior do que o objetivo da vitória. Como se nota nas brincadeiras informais onde às vezes não há nem gol, só gente correndo pra lá e pra cá atrás de uma bola, sem objetivo que não o prazer do próprio jogo.

O futebol brasileiro seria ainda uma característica mais específica, diferenciada do futebol europeu. Seguindo uma idéia de um texto de Pasolini, de 1971, Wisnik divide dois tipos de linguagem do futebol: o futebol prosa, feito de marcação, de jogadas objetivas em direção ao gol, trajetórias angulosas da bola, cruzamento e cabeceio; o futebol poesia, de muita posse de bola, muito drible, trajetórias curvilíneas. O 2º tipo seria o futebol brasileiro. Uma linguagem própria de negros e mulatos, de trabalhadores que, diferentes de seus companheiros de classe europeu, não têm no futebol um espaço que transcende o trabalho e a disputa política, mas tem, isso sim, no futebol sua expressão máxima, único espaço de manifestação numa sociedade onde não têm vez nem voz.

1958 foi o ano em que este futebol ganhou o mundo. Virou sinônimo de Brasil. Junto com a Bossa Nova e a arquitetura moderna de Niemeyer e Lúcio Costa, foram os únicos produtos culturais brasileiros a se tornarem expressão mundialmente reconhecida.

E a linguagem do futebol é associada por Wisnik a outras expressões da linguagem brasileira na literatura, na música ou na política. Assim, torna-se uma contradição muito salutar um comunista e filósofo de praia como João Saldanha ser o técnico da seleção tri-campeã em pleno regime militar, no tempo da pátria de chuteiras e do "Brasil ame-o ou deixe-o". A partir de 1974 seria o triunfo do militarismo, da objetividade e do pragmatismo no futebol do selecionado nacional, em times comandados por Zagalo, Coutinho ou Parreira. (Um hiato expressivo de liberdade do futebol malandro no período Telê Santana).

As associações são muitas e muito curiosas: Garrincha - Macunaíma. João Saldanha - Machado de Assis (num país onde um mulato livre pode até ser o presidente da Academia de Letras, só não podia era tocar no assunto de sua condição de mulato). Drible - síncopa. Oswald de Andrade: "A alegria é a prova dos nove". Garrincha capaz de driblar o time adversário inteiro, inclusive o goleiro, chegar até o gol e, invés de chutar para dentro, voltar para driblar todo mundo outra vez.

Falo, falo, e não consigo reproduzir nada do que foi aquela noite. Nem parecia que estávamos ouvindo uma palestra acadêmica. Parecíamos estar batendo uma bola com o palestrante, um mágico encantador-encantado pela arte do futebol.

Fico agora doido para passar a correria dos compromissos e arranjar um tempo para sorver o livro. Mesmo antes de lê-lo já posso garantir aqui no blog: certamente um dos maiores jamais escritos.

E saímos eu, o Artur e o Fábio, depois de gostosas risadas, muito satisfeitos. Agora podemos falar ainda mais de futebol, e com o orgulho de estarmos tratando de um assunto acadêmico.


Sobre o mesmo tema, leia também minha resenha do texto "Machado maxixe".

E a resenha do Idelber Avelar para o livro Veneno remédio.

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sábado, 2 de agosto de 2008

Já vai tarde, ministro

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Este blog congratula-se com a saída de Gilberto Gil do Ministério da Cultura. Nada contra a pessoa do ministro, e muito menos contra a atuação do ministério, à qual, pelo pouco que acompanhei, só tenho elogios.

Por exemplo, foi muito boa a política do ministério de des-centralizar as iniciativas culturais. Afinal, a cultura brasileira vai muito além do Rio-São Paulo. Houve também ótimas iniciativas para democratizar a cultura, como por exemplo toda a discussão que foi feita em torno das possíveis mudanças na Lei do Audiovisual. Obviamente esta é uma questão que envolve escabrosas disputas de poder, e que portanto têm de ser resolvidas em nível hierárquico superior ao do MINC. Mas pelo menos o setor da cultura iniciou uma discussão com participação da sociedade. Outro fator muito importante foi o engajamento pessoal do artista-ministro na discussão sobre direitos autorais e o apoio ao projeto Creative Commons.

O que me contrariava na gestão de Gilberto Gil era o fato de ele querer ser um ministro-cantor. São duas ocupações excludentes, nas quais ocorrem muitos tipos de conflitos de interesse. É nítido e claro que, mais do que um serviço público prestado à cultura nacional, a atuação de Gil no ministério serviu principalmente como veículo de divulgação e incremento de sua carreira artística, principalmente no exterior. Aliás, o próprio ministro admite isso, e aponta o incremento da carreira como motivo para deixar o cargo, coisa que ele já vem tentando fazer desde 2006, mas sempre ficando mais um pouco a pedido do presidente Lula.

Assim, se o verdadeiro executivo da pasta ficar mesmo no cargo, o Brasil só tem a ganhar. Só espero que o ministério não entre como cota de alguma de negociação política mesquinha como sempre acontece neste governo (não mais do que nos anteriores).

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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Música como disciplina curricular

Recebi esta notícia por e-mail:

Comissão da Câmara aprova por unanimidade Projeto de Lei pela volta da educação musical na educação básica.

O Projeto de Lei 2732/2008, com relatoria do Dep. Frank Aguiar, que determina a obrigatoriedade do ensino musical na educação básica, foi aprovado hoje, dia 28 de maio, ao meio-dia, por unanimidade pela Comissão da Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados. Para ter valor de lei, falta apenas a votação na Comissão de Constituição de Justiça, o que deve acontecer entre uma semana e 15 dias. A votação foi acompanhada pelo Grupo de Articulação Parlamentar Pró-Música (GAP), que é formado por 86 entidades, como universidades, associações e cooperativas de músicos. O Projeto de Lei é fruto de uma mobilização desse grupo.

O Projeto, originado no Senado sob o número 330/2006, é de autoria de Roseana Sarney (PMDB-MA) e relatoria de Marisa Serrano (PSDB-MT). Contou também com o apoio da Comissão de Educação, através dos senadores Roberto Saturnino, Sérgio Zambiasi, Romeu Tuma, Cristóvam Buarque, Juvêncio da Fonseca e Leonel Pavan. A aprovação no Senado também foi unânime.

O ensino de música nas escolas foi retirado do currículo na década de 1970. Com seu retorno, a idéia não é formar músicos profissionais, mas sim um reconhecimento dos benefícios que esse ensino pode trazer para o desenvolvimento e a sociabilidade das crianças.

(Grupo de Articulação Parlamentar Pró Música)

Confira o texto da Relatoria.


O projeto estava em discussão há tempos. Pelo que entendi não precisa passar pelo plenário da casa (se não isso demoraria anos para ser implantado) nem esperar sanção presidencial.

Somado à notícia da implantação da Filosofia e da Sociologia no Ensino Médio, podemos esperar uma geração muito melhor educada vindo por aí.

Só que a aprovação das leis não é o último passo. É apenas o primeiro. Agora é preciso formar professores, desenvolver material didático, um monte de questões práticas.

Por isso, acho que este movimento não vai para por aqui.

Filosofia e Sociologia no Ensino Médio

Fiquei sabendo da notícia pelo Idelber Avelar, que apoia fortemente a medida. Agora é lei - o Ensino Médio incluirá as disciplinas de Sociologia e Filosofia.

Este blog também é a favor.

O próprio Idelber dá lá os links de quem é contra a medida. Inclusive um certo colunista da Veja, que afinal é uma revista acima de qualquer suspeita de doutrinação ideológica. Parece que vai se repetir uma ladainha mentirosa já iniciada pelo chefe de jornalismo da Globo, conforme relata o mesmo Idelber, a respeito do caso de um livro didático de história.

O mesmo discurso falso está no texto Doutrinação barata, escrito por Nelson Ascher para a página E6 do caderno Ilustrada da Folha de hoje. Quando comecei a ler jornais, a Folha não seguia o mesmo caminho de Veja e Globo, mantinha-se um nível jornalístico acima. Faz tempo que já não é mais assim. Tá certo que o texto é uma opinião assinada - e não a opinião do jornal. O mesmo se poderia dizer do Reinaldo Azevedo, ou talvez das falas do Arnaldo Jabor. Alguém acredita que estes caras tem opinião própria? Eles são muito bem pagos para escrever editoriais assinados, livrando a cara dos editores.

Ao que me parece, o Nelson Ascher é médico. Entende muito de educação, filosofia ou sociologia, portanto. Usa uma história pessoal, mostrando como aprendeu a gostar de Dostoievski sem ter aulas de literatura estrangeira no Ensino Médio. E afirma que não se lembra mais do que memorizou dos conteúdos escolares oficiais. Conta que estudou "num dos melhores colégios de São Paulo", que "sabia maximizar nossa capacidade de memorizar", pois ele os colegas passaram em concorridos vestibulares.

Ele provavelmente não sabe, mas faz tempo que a escola não serve mais para "maximizar capcidade de memorização". Para isso temos computadores. Escola serve para preparar para a vida, para as relações humanas, para o aprendizado contínuo, para a construção do conhecimento. Se Sociologia e Filosofia não servirem para isso, não sei o que servirá. Ascher queixa-se de que esqueceu o aprendido em matérias "rigorosas e/ou factuais: trigonometria e geometria analítica, ótica e química orgânica". Estas matérias poderiam ser dispensadas do Ensino Médio e ficar para vestibulares vocacionais das áreas técnicas. Já um engenheiro ou um médico que sabe bem as tais "matérias factuais" pode ser um péssimo profissional (temos deles aos montes por aí) por não saber construir relações humanas, respeitar as diferenças, trabalhar de forma cooperada por um mundo melhor.

Afinal, a melhor doutrinação ideológica que se pode fazer com os estudantes é justamente a que já temos de sobra: sonegar-lhes formação cultural, para que continuem sendo escravos. A certos interesses não vai bem uma formação humanística mais ampla - afinal, pessoas que pensam dão mais trabalho. Não acreditam em tudo que lêem nos jornais ou vêem na televisão...

sexta-feira, 30 de maio de 2008

UNASUL

Esta semana foi criada, por decisão conjunta de chefes de Estado dos países sul-americanos, em reunião realizada no Brasil, a União das Nações Sul-americanas. Esta decisão tem uma importância estratégica difícil de medir, reflete mudanças recentes da geopolítica regional, e pode significar o começo de um importante processo para os países do sub-continente.

A América do Sul é, desde o século XVI, um quintal de pontências colonialistas. Portugal e Espanha, ligeira presença francesa, inglesa e holandesa na região amazônica das Guianas, e esporádicas invasões de franceses e holandeses nos territórios portugueses. Com as independências no início do século XIX, que foram parte de um processo maior de crise do Antigo Regime na Europa, precipitado pela dupla revolução (Revolução Industrial e Revolução Francesa - usando uma análise de Eric Hobsbawn em A era das revoluções), as novas nações sul-americanas saíram do âmbito colonial direto. Da sujeição total às metrópoles espanhola e portuguesa, passou a uma sujeição velada às duas novas grandes potências européias (não por acaso os países que lideraram a dupla revolução) - Inglaterra e França. A Inglaterra apoiou as independências nacionais e o fim do tráfico de escravos. Beneficiou-se do fim das restrições comerciais que davam exclusividade ao comércio com as metrópoles ibéricas e fez grandes investimentos na região. A França tornou-se o modelo cultural por excelência, ditando a moda para os conservatórios de música, os movimentos literários, as academias de Belas Artes, os colégios para moças, as reformas urbanísticas (que criaram várias "Paris" no continente - Buenos Aires, Santiago, Motevidéu, Rio de Janeiro).

Até a década de 1920 os países sul-americanos continuaram na órbita dos interesses de França e Inglaterra, com alguma influência também da Itália (país que forneceu grandes fluxos humanos, especialmente para Brasil, Argentina e Uruguai, bem como ditou o gosto musical através do predomínio da ópera). Mas as nações que dominaram o século XIX europeu e mundial começaram a sofrer a concorrência forte de duas novas potências: Alemanha e Estados Unidos. Ambos os países já eram as mais poderosas economias industriais por volta de 1870, mas ainda não tinham nenhuma influência geo-política de alcance maior. A entrada da Alemanha na disputa pelos domínios coloniais europeus na África e na Ásia foi um dos fatores causadores da grande guerra de 1914-1945 (novamente usando uma idéia de Eric Hobsbawn em A era dos extremos. O breve século XX - livro no qual o autor propõe a idéia de que não existiram duas guerras separadas por um período de paz, mas um período de guerra mais ou menos constante com concentração de conflitos no início e no fim).

A outra potência, os Estados Unidos, não tinha qualquer condição de entrar em disputa pela hegemonia no continente europeu. Tratou então de tentam disputar com os europeus a hegemonia no continente americano. A princípio, a própria constituição territorial norte-americana foi um processo de disputa com espanhóis e franceses, desde o fim do século XVIII. No século XIX os EUA trataram de garantir sua hegemonia sobre os países da América Central, aonde as grandes companhias monopolistas norte-americanas foram ostensivamente apoiadas pelas tropas do país, gerando o fenômeno apelidado de "repúblicas de banana", numa alusão ao poder da International Fruit Company, que fazia e desfazia governos na região conforme seus interesses e usando sempre o apoio militar norte-americano.

A partir da crise de 1929, houve nos EUA uma política intesiva de indução ao desenvolvimento, posta em prática pelo governo de F. D. Roosevelt. Entre outras medidas, foi criado um programa que recebeu bilhões de dólares do governo federal (numa época em que bilhões valiam talvez o que valem hoje os trilhões), chamado WPA - sigla para um programa de incentivo ao emprego. Isso foi necessário no momento em que a maior cirse do capitalismo deixou milhões de desempregados, de falidos e de miseráveis. Outra parte do programa para ressucitar a economia norte-americana incluiu um programa pesado para estimular a presença cultural e econômica na América do Sul. Foi chamado de OCIAA (Office of the Coordinator for Inter American Affairs), e foi o início do que ficou conhecido como "política da boa vizinhança". A ação deste organismo foi bem estudada por Antônio Pedro Tota em seu livro Imperialismo sedutor.

Em 1939, com o início oficial da Guerra na Europa, os EUA passaram a se preocupar com a grande influência que os nazistas tinham na América do Sul, especialmente os significativos enclaves alemães no sul do Brasil e na Argentina, bem como uma política muito bem organizada de cooperação com governos e difusão cultural, que deixava os americanos em desvantagem. Para combater esta influência alemã, os EUA lançaram um programa ainda mais ambicioso - a União Panamericana. Apesar do nome indicar um organismo multi-lateral, que envolveu efetivamente a participação dos vários países do continente, a liderança era exercida indubitavelmente pelos norte-americanos, que inclusive eram os principais mantenedores de todos os programas da Instituição. Em 1947, com o início da Guerra Fria os interesses geo-políticos norte americanos deixaram de se concentrar na América, pois passaram a disputar a hegemonia em todos os continentes. A União Panamericana transformou-se em Organização dos Estados Americanos - OEA. Através da OEA os Estados Unidos continuaram a exercer sua total hegemonia no continente, onde agora não tinham mais a concorrência das potências européias destruídas pela guerra. Na década de 1960 o continente voltou a atrair a atenção dos EUA por causa da revolução cubana. O medo de que várias Sierra Maestra pipocassem pelo continente levou à Aliança para o Progresso e ao apoio às sanguinárias ditaduras impostas por golpes militares em toda a América Latina. As revoluções socialistas tinahm que ser evitadas a qualquer custo, e os custos foram bem altos como já sabemos.

Acontece que na década atual, os jovens sonhadores dos anos 1960, esquerdistas porra-loucas que sobreviveram às torturas e assassinatos políticos das ditaduras do continente, são presidentes das repúblicas, ministros de Estado, etc. Essa onda vermelha vem ganhando todas as eleições na América do Sul após o total fracasso das políticas neo-liberais da década de 1990. E esses novos governos Sul-americanos decidiram tomar medidas efetivas para que a região deixe de ser o quintal dos Estados Unidos. para isso tiveram que resolver ridículas picuinhas regionais. Brasil e Argentina, as maiores potências da região ciraram uma solução definitiva para sua rivalidade militar e uniram-se no Mercosul (que anda aos trancos e barrancos mas cumpre um papel importantíssimo para ambos os países). Depois foi preciso vencer a resistência da Colômbia, o único país da região que ainda mantinha fortes interesses em continuar sob a órbita norte-americana, intoxicado pelos bilhões de dólares recebidos para estúpidos programas anti-drogas (na verdade programas anti-guerrilha de esquerda pois os cartéis de drogas continuam mandando nos grupos para-militares e no governo colombiano como sempre).

Para encurtar a história, UNASUL significa o fim da hegemonia norte-americana exercida pela OEA. Isto ficou claro quando os países da região sentaram à mesa para uma solução negociada da crise gerada pela invasão do território equatoriano por tropas colombianas no episódio em que um lider das FARC foi morto. É paradigmático que, pela primeira vez, os EUA não foram nem convidados para a conversa. Resolvemos tudo por aqui mesmo.

Hoje, os estrategistas norte-americanos reconhecem que não se pode mais pensar na geo-política para a América do Sul sem levar em conta a liderança do Brasil. E o Brasil precisa ter a coragem de fazer o que os EUA não fizeram no período em que lideraram a região. Ouvir e respeitar os vizinhos e, principalmente, beneficiar-se com um corajoso programa de desenvolvimento econômico e social que somente a liderança do Brasil pode implantar na região.

É isso que significa esta sigla UNASUL

terça-feira, 20 de maio de 2008

O povo de Deus no exílio

Tempos atrás folheei o livro de Milton Schwantes – Sofrimento e esperança no exílio e fiquei intrigado. Prometi para mim mesmo que leria o livro e faria uma resenha dele no blog. A leitura continua nos meus planos. A resenha não, porque já está feita no Cultura blá, blá, blá .

Só faltou o Eduardo esclarecer um pouquinho mais sobre os porquês de algumas coisas. O livro foi escrito na década de 1980 e merecidamente reeditado agora. Schwantes é luterano, formado em teologia no Rio Grande do Sul e pós-graduado na Alemanha. Assumiu o pastorado de uma paróquia em Santo André no ABC paulista. Diante de uma comunidade operária da periferia de uma das maiores metrópoles industriais do mundo, deve ter ficado se perguntando o que faria com todo seu conhecimento teológico e como poderia aplicá-lo à realidade local de pobreza, exploração e miséria.

Encontrou o nexo entre o exílio babilônico dos judeus e os pobres latino-americanos, eternamente exilados em sua própria terra.

Schwantes fez como outro importante teólogo. No início do século XX, Karl Barth, então discípulo de Harnak e teólogo liberal de carteirinha assumiu o pastorado de uma comunidade operária. Descobriu que o otimismo liberal só servia aos gentlemans da belle époque e não aos pobres bastardos do mundo industrial. Reformulou sua teologia, sendo um dos primeiros a propor respostas à grave crise que o mundo enfrentava, onde as certezas do século XIX entraram em colapso. Em 1919 publicou seu comentário Aos Romanos, sobre a carta de Paulo. Com certeza o livro de teologia mais influente do século.

Assim como o livro de Barth, o de Schwantes certamente desagrada evangélicos fundamentalistas (uso aqui um pleonasmo), pois relativiza a noção de autoria do Pentateuco e problematiza a falsa noção de inspiração divina literal (uma tese que defende que a Bíblia seja um livro coerente e unitário, psicografado por Deus para seus escolhidos).

domingo, 18 de maio de 2008

Uma passagem para a vida



Um filme de Patrice Leconte, com uma cativante trilha sonora de Pascal Estèves, e excelente atuação de Jean Rochefort e de Johnny Hallyday (para mim um total desconhecido, mas é um astro do rock francês).


Filmado em 2002, não foi exibido nos cinemas brasileiros. Que bom que existe em DVD, por que é um filme que merece ser assistido.


Um assaltante de banco e um professor aposentado de uma cidadezinha do interior da França se encontram por acaso e tornam-se inusitados amigos. Confrontados pela vida um do outro, cada um descobre o quanto sua vida é monótona e o quanto poderia ser interessante se fosse diferente.


É por causa de filmes como esse que o cinema vale a pena. Porque torna-se uma oportunidade de refletir sobre a vida, sobre o ser humano - as dores e delícias que cada um tem de ser o que é. Se isso pode ser feito com boas doses de humor, grande poesia visual e trilha sonora cativante, melhor ainda.


sábado, 17 de maio de 2008

60 anos

Estou atrasado para escrever sobre isso, mas tudo bem. O aniversário foi semana passada, mas o tema continua atual, e continuará por muito tempo.

Dia 9 de maio completaram-se 60 anos da fundação do Estado de Israel. É uma data que merece vários tipos de comemoração.

Os evangélicos fundamentalistas (pleonasmo) comemoram a data como se fosse um sinal dos tempos, uma claro indício de que Deus está "agindo na história". Quem consagrou esta interpretação escatológica da criação do Estado de Israel foi Hal Lindsey em seu livreto The late great planet Earth, publicado nos EUA em 1970, e cuja primeira edição em português saiu em 1973, com o título A agonia do grande planeta Terra. O livro foi traduzido para muitas línguas e vendeu muitos e muitos exemplares. (A edição que pertence ao meu pai estampa na capa o número de 2 milhões de exemplares vendidos, o que se refere provavelmente à soma das edições em várias línguas.)

Neste livro o autor fez um contorcionismo hermenêutico com a passagem do capítulo 24 do Evangelho de Mateus, para dizer que a figueira a que Jesus se referia no texto era o povo de Israel. Este capítulo do Evangelho de Mateus é terrivelmente apocalíptico, e as descrições feitas por Jesus são interpretadas por muitos como profecias para o fim do mundo. Em certa altura do texto, nos versículos 32 a 34, Jesus afirma:

Aprendei, pois, a parábola da figueira: quando já os seus ramos se renovam e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim também vós: quando virdes todas estas cousas, sabei que está próximo, às portas. Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.

Para Lindsey, o texto previa a recriação do Estado de Israel - que corresponde ao rebrotar da figueira descrito no texto. E a afirmação de que não se passará a geração antes que tudo aconteça foi interpretada como sendo uma profecia de que a volta de Cristo (evento que a escatologia considera o fator desencadeador do fim do mundo) não demoraria mais do que 40 anos (uma geração) após 1948.

Como 1988 já passou faz muito tempo, este livro hoje só presta para ser motivo de ridículo. Apesar disso, as idéias a respeito do Estado de Israel como manifestação da vontade divina - apesar de igualmente ridículas - continuam em voga entre os evangélicos até hoje. Os mesmos evangélicos que elegeram Bush por causa do discurso moralista (anti-aborto e anti-pesquisa com células tronco principalmente) são os que também pressionam por uma política externa pró-Israel.

Este é o tipo de comemoração do Estado de Israel com o qual este blog definitivamente não comunga.

Prefiro celebrar o Estado de Israel como o lugar de descanso de um povo que viveu à margem da cristandade ocidental, vivendo perseguido e fugitivo por mais de 2 mil anos. Lugar de descanso entre aspas: desde que conseguiram criam um estado territorial os judeus nunca descansaram pois desde 1948 vivem em permanente estado de guerra com os vizinhos, sofrendo ataques tanto militares quanto do terrorismo civil.

A mim que sou estudioso do tema da identidade nacional (especificamente a relação que isso tem com a música no Brasil), me impressiona como um povo foi capaz de manter uma identidade nacional por tantos séculos, mesmo sem contar com um Estado ou com um território. Tribos nômades que migraram primeiro da Mesopotâmia, depois passando pelo Egito, os hebreus se estabeleceram na Palestina no século XIII a.C. Constituíram uma monarquia com território definido e capital fixa no século X a.C. Logo em seguida dividiram-se em 2 reinos, o do norte sendo totalmente dizimado pelos assírios no século VII a.C. O do sul - o reino de Judá, que ficou com a capital Jerusalém - é o que subsistiu como povo. São os judeus, que desde o século VI a.C. não tem mais um Estado territorial.

Invadidos pelas tropas de Nabucodonosor da Babilônia, os judeus tornaram-se um povo em permanente exílio. Foi no exílio babilônico que se constituiu o juadaísmo, uma religião de estrita observância das leis divinas, da conservação de livros sagrados e das reuniões para adoração em sinagogas. Foi no período do exílio babilônico que os textos sagrados judeus ganharam forma escrita mais ou menos definitiva - o que os cristãos reconhecem hoje como o Antigo Testamento.
Salvo por um curto período no século III a.C., os judeus nunca mais tiveram um Estado. Aprenderam a viver em permanente exílio. Reconheciam-se pela observância da lei divina e pela reunião nas sinagogas, que se expalharam por todo o Oriente Próximo do Império Persa e por toda a região do Mediterrâneo do Império Romano. Foi assim que por séculos mantiveram sua identidade. Eram uma nação sem pátria, sem Estado. Existiram muito antes de surgir a idéia moderna de nação (todas a nações que reconhecemos hoje não têm mais do que 200 anos de existência).

O que lhes deu esta coexão? Alguém diria que foi a religião. Acontece que, a partir do século XVIII começou a surgir um expressivo contingente de judeus não religiosos. Estes judeus secularizados foram parte importante do arcabouço filosófico da modernidade européia. Judeus que não se reconheciam mais na observância da religião judaica. Que pretendiam se incorporar plenamente à vida secular que surgia na Europa após o colapso da cristandade compulsória. E que nunca foram plenamente recebidos na sociedade européia. Parece que o judeu tinha uma marca - mesmo quando ele mesmo já não se reconhecia como judeu a sociedade laica européia continuou a discriminá-lo como fizera quando a cristandade recusava-se a aceitar os nãos cristãos.

Então a coesão tinha motivos étnicos? Também não. A multiplicadade de etnias que se reconhecem como judeus é notória. Afinal o juadaísmo foi sempre uma religião de descendência - os filhos de Abraão - mas sempre uma religião aberta a receber fiéis de outras descendências e a misturar-se no meio dos povos em que habitaram. Por isso temos pelo menos dois grandes grupos reconhecíveis no judaísmo europeu: ashkenazin (em geral de pele clara e idioma ídiche, espalhados pela Europa Central e do Leste) e sefaradim (em geral de pele escura e idioma ladino, espalhados pelo Sul da Europa e pelo Norte da África e Oriente Médio).

Permanece então um grande mistério esta impressionante coesão de um povo, que manteve sua indentidade ao longo de cerca de 2 mil e 500 anos sem ter território, monarquia, idioma oficial ou característica étnica que pudesse identificá-lo.

No fim do século XIX, parte desses judeus secularizados, inspirados pelos muitos movimentos contra a opressão que surgiram em solo europeu (socialistas de vários tipos, anarquistas, nacionalistas, etc.) começaram a cogitar um Estado judeu. O movimento ganhou o nome de sionismo, e foi a primeira forma de reação coordenada que os judeus organizaram para resistir às violências que lhe foram impetradas em mil e quatrocentos anos de perseguição sistemática por parte dos cristãos europeus. Neste período a perseguição se tornou mais aguda na Europa Central e do Leste, criando ondas de migração massiva de judeus para os EUA e, pela primeira vez em muitos séculos, de volta à sua Terra Prometida na Palestina.

O genocídio nazista foi a gota d'água que levou as potências ocidentais a reconhecer um Estado judeu na Palestina. Era uma espécie de "desencargo de consciência" para com um povo tão durante perseguido em toda a história da Europa. Mas não passou disso - um desencargo de consciência, pois logo em seguida a região da Palestina tornou-se um eterno joguete político das potências, que tentaram agradar ao mesmo tempo o nascente nacionalismo pan-árabe e o recém-criado Estado de Israel. Logo estes dois lados do conflito passaram a dividir-se conforme os dois lados da Guerra Fria: União Soviética e seus asseclas comunistas espalhados pelo globo alinharam-se do lado árabe do conflito. Estados Unidos e seus asseclas capitalistas e fundamentalistas (duas faces da mesma moeda) alinharam-se do lado judeu. Ainda atrpalhados pelo arraigado anti-semitismo que continuou forte na Europa, especialmente entre os católicos.

Depois de resisitr a tudo isso, o Estado de Israel comemora 60 anos. Tornou-se a pátria de todos os judeus. Mesmo aqueles que têm outras pátrias e que nunca foram à Palestina. É hoje o único Estado minimamente democrático do continente asiático. Se conseguir desatar o nó do conflito com os Palestinos de forma negociada será o maior exemplo de pluralidade que o mundo precisa para o século XXI.

É este o tipo de comemoração que anima este blog.

Esta foi, leitor, a minha versão da história. Recomendo fortemente que você conheça também a versão do Pedro Dória e a do André Tavares - com uma importante réplica a um comentarista.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Judeus, cristãos e muçulmanos: quem é intolerante?

Nos últimos tempos, me engalfinhei aqui no blog num debate com o André Tavares por causa do conflito Israel Palestina. Escrevi um texto a propósito da discussão entre dois dos meus blogs favoritos, e acabei ganhando um debatedor e mais um blog favorito. Os meus textos estão aqui e aqui, e nos comentários estão as considerações do André Tavares.

Como o tema é muito relevante, e envolve questões históricas muito interessantes, vou prolongar um pouco essa discussão. Em outro comentário, desta vez respondendo um comentário meu no seu blog, André Tavares afirmou:

E não foram exatamente os cruzados que “perturbaram” o Oriente Médio, os muçulmanos já haviam invadido a península ibérica, tomado todo o norte da África (onde havia importantes centros cristãos como Alexandria, Cartago e Hipona) e ameaçavam Constantinopla e a Europa - era um real perigo para o Cristianismo que se concretizou com os otomanos. A iniciativa da expansão pelas armas, meu caro, é do Islam. Tomar Jerusalém e os lugares santos para os cristãos era um símbolo de resistência (veja bem que não estou negando as atrocidades e crimes dos cruzados) cristã.

A frase dele é a propósito de atribuir a quem a iniciativa pela violência no Oriente Médio. Acho que são questões bem diferentes, pois a violência atual tem mais a ver com as interferências colonialistas européias na região, desde fins do século XIX. Especificamente, a atual conjuntura regional decorre da ocupação da Palestina por Inglaterra e França após a derrocada do Império Otomano por ocasião da Primeira Guerra Mundial. A presença do Estado judeu na Palestina é também uma conseqüência direta da perseguição sofrida pelos judeus na Europa.

Além destas questões mais recentes, nossa discussão enveredou por um passado mais remoto. Eu atribuí o início da violência aos cruzados dos séculos XI a XIII, causando ressentimentos e vingança da parte dos muçulmanos. Por isso o André Tavares escreveu a frase acima, afirmando que a violência partiu do Islã na conquista da Palestina e Norte da África nos séculos VII e VIII.

Sobre esta questão, é preciso dizer que as rápidas conquistas militares dos muçulmanos não podem ser explicadas apenas pela lógica da violência e da supremacia militar. Trata-se sobretudo de uma conquista cultural, de uma região em crise – sem um Estado capaz de administra-la eficazmente. Neste pormenor, eu compararia com as conquistas que o império romano fez na Europa nos últimos séculos da era pré-cristã, ou como as conquistas de Alexandre no século IV a.C. Ou mesmo com as “invasões” germânicas ao império romano no século V da era cristã.

Trataram-se de uma vitórias culturais, muito mais do que militares. Não houve destruição em massa ou escravização dos povos subjugados. Nem houve tentativa de revolta dos dominados. Porque os dominadores mantiveram as estruturas políticas, culturais e religiosas pré-existentes, não fizeram grandes mudanças na estrutura populacional, mas apenas substituição nas elites governamentais.

Por isso eu diria que é incorreto atribuir a iniciativa da violência na região às primeiras conquistas muçulmanas. Os muçulmanos aproveitaram um vácuo de poder deixado pelo decadente império bizantino, e respeitaram sempre a diversidade religiosa pré-existente. Cristãos e judeus sempre foram bem tolerados no mundo islâmico, apesar de terem restrições jurídicas e econômicas. Os cristãos é que, a partir de Agostinho, passaram a negar aos não-cristãos e aos não suficientemente ortodoxos (taxados como hereges) o próprio direito à vida. Pergunte a um judeu do século VIII em diante aonde ele preferiria morar – na Europa cristã ou nos territórios muçulmanos? Pergunte aos cristãos monofisistas de Egito, Síria, Pérsia e Armênia o que eles preferiam – se o domínio da ortodoxia bizantina ou os governos muçulmanos.

Além do mais, não há registros de que os invasores muçulmanos tenham promovidos massacres e chacinas de populações inteiras como fizeram abundantemente os cruzados. Aliás, os judeus precisam lembrar que os cruzados começaram impetrando massacres aos judeus na Europa, como “exercício” para invadir a Palestina. Nos territórios bizantinos, os cruzados massacraram cristãos orotodoxos-gregos. E finalmente, terminaram seu rastro de sangue dizimando populações inteiras de cidades muçulmanas. Deixaram a marca indelével da violência e do ódio, coisa que não existia no período muçulmano.

Também é válido lembrar que o Norte da África já era palco de disputas há séculos. Tinha sido ocupado pelos colonizadores fenícios, que fundaram Cartago alguns séculos antes de Cristo. Foi invadida pelos romanos após a vitória nas guerras púnicas. Nos tempo de Agostinho, existia um profundo rancor das populações locais contra a ocupação romana, o que se traduziu nas revoltas donatistas – estudadas muitas vezes como mera heresia teológica. No século V os Vândalos invadiram e assolaram a região impondo o cristianismo ariano e perseguindo e matando o clero niceno. No século VI a região foi conquistada pelos bizantinos do imperador Justiniano. De modo que os muçulmanos no século VII/VIII não foram os iniciadores da violência no Norte da África. Nem tampouco ameaçaram algo que se pudesse considerar como um equilíbrio cristão na região. Vale lembrar que os primeiros a perpetrar violência na região foram os cristãos no século IV, quando começaram a perseguir os pagãos, matando-os e destruindo seus templos. Os cristãos chegaram mesmo a atear fogo à maior biblioteca da Antigüidade, em Alexandria, para impedir o contágio das idéias pagãs.

André Tavares também sugere que o Islã seja uma religião violenta por natureza, e que isso está claramente expresso no Corão. Ora, os textos sagrados judeus são plenos de violências, e mostram um Deus vingativo e impetrador de massacres e genocídios. A mesma lógica da violência religiosa perpassou o cristianismo, apesar de não haver apologia à violência no Novo Testamento. Houve até teólogos como Márciom, que no segundo século considerou que o Deus cristão não era o mesmo dos judeus por conta da violência dos textos do chamado Antigo Testamento. Obviamente as idéias de Márciom foram violentamente suprimidas do meio cristão...

Sobre a questão de ser o Islã uma religião violenta por definição, remeto a alguns textos do blog do Pedro Dória, onde isso está bem explicado.

Neste post Pedro Dória explica por que é incorreto classificar o islã como violento e intolerante. E olha que o Pedro Doria é judeu...

Aqui, também no blog do Pedro Doria, trecho de uma entrevista da historiadora Karen Armstrong, a propósito de seu livro sobre o budismo. Inclui a afirmação de que o monoteísmo tem a tendência para a intolerância, por propor o conceito de Deus único e verdade única. Isso inclui judeus, cristãos e muçulmanos. Daí para matar os que não concordam é um pequeno pulo...

Como se vê, intolerância e imposição violenta de “verdades” religiosas não é característica muçulmana. É característica do judaísmo, aprendida pelo cristianismo (com certeza não tem nada a ver com o exemplo do Cristo) e depois imitada pelo Islã.

Por isso, acho que culpar os muçulmanos pela violência no oriente médio não ajuda em nada a resolver a situação. É, isso sim, argumento de quem se beneficia com a escalada da violência e pretende perpetuá-la. O caminho para a paz passa pelo diálogo, e pela capacidade de compreender o outro. Sobre isso, temos o grande exemplo dado pelo judaísmo na figura de um Martin Buber, por exemplo. Sobre ele, falo em outra oportunidade...

terça-feira, 15 de abril de 2008

Zuzu Angel

Uma jovem mãe, separada do marido, com três filhos pequenos para criar. Costura para sustentar a família, mas aos poucos torna-se uma grande estilista de sucesso internacional.

Enquanto isso, durante os “anos de chumbo” do regime militar, seu filho Stuart entra no movimento estudantil e, em seguida, na luta armada e na clandestinidade. Participa do grupo de Carlos Lamarca (o filme não menciona a sigla, mas que eu me lembre é VPR – Vanguarda Popular Revolucionária), termina preso, torturado, morto e tem o corpo jogado ao mar.

Em torno desta tragédia pessoal (e de toda um geração), se passa a narrativa do filme. A luta política de uma mãe para encontrar o filho, garantir sua integridade. Depois de receber a notícia de sua morte, a luta para ter o direito de sepultá-lo e para ver condenados os assassinos de Estado.

O tema é tão melindroso, e ao mesmo tempo rico, que permite ótimos trabalhos artísticos. Lembro de outros que já ficaram clássicos sobre a luta armada no cinema brasileiro: O que é isso companheiro e Lamarca, o capitão da guerrilha. Zuzu Angel está à altura de ambos. É grande cinema, como já estamos ficando acostumados a ver sendo feito no Brasil da última década. É um filme digno da memória de uma mulher de fibra, e digno da luta de uma geração por justiça social e democracia.

O drama de Zuzu é embalado pela belíssima trilha sonora de Cristóvão Bastos, um dos grandes músicos brasileiros, por muito tempo arranjador e líder da banda de Chico Buarque. Imagino que 80 por cento do clima psicológico criado pelo filme é de responsabilidade da trilha sonora.

Enfim, é cinema profissional. Cenários, figurinos, atores, fotografia, direção – tudo de alto nível. E aquela qualidade que só o cinema nacional proporciona: o reconhecer-se na tela, nas paisagens, nas falas dos personagens, nas histórias vividas e narradas.

Mas como o filme trata de um tema histórico de absoluta relevância, não posso deixar de fazer uma leitura da história do Brasil a partir dos eventos que o filme traz. Me parece que há uma clara dicotomia neste filme, e em todos que tratam da luta armada contra o regime militar. Como não existe cineasta disposto a elogiar os milicos, a história será sempre uma glorificação dos jovens quixotescos que tentaram lutar por justiça social, fazer a revolução brasileira.

Mas nesta história não há tanta clareza sobre quem são os mocinhos e quem são os bandidos. Acredito que o cinema brasileiro vai dar mostras de amadurecimento quando puder tratar este tema sem glamourizar a guerrilha e demonizar a “ditadura”. Coloco o termo entre aspas porque sociologicamente incorreto. Não houve ditadura. Houve governantes militares, com congresso funcionando, eleições (não sei se eram menos livres que as que temos hoje), judiciário (era tão conservador como continua sendo) e, obviamente, amplo apoio popular.

Por outro lado, a luta armada era uma dissidência minoritária da esquerda no país. Uma estratégia política burra que serviu para justificar o endurecimento do regime militar, suas arbitrariedades e torturas. Afinal, o “perigo vermelho” era uma ameaça real, intolerável para as classes dominantes do Brasil.

Não deixaria de ser um exercício útil pensar como seria o regime político caso os stalinistas do PCdoB (e de outros grupelhos dissidentes) tivessem tomado o poder do Estado. Para os que tentam vender a imagem de uma esquerda feita de jovens idealistas seria talvez o mundo da justiça e da solução dos problemas sociais do país. Os exemplos que embalavam os sonhos destes jovens (União Soviética, China e Cuba) talvez sejam um bom modelo para reflexão.

Pergunto: quando o cinema nacional vai aprender com Caetano Veloso e outros artistas da época, e colocar a juventude comunista no merecido lugar histórico? Afinal, idealizar este tipo de passado não traz grandes benefícios para nosso futuro.

sexta-feira, 28 de março de 2008

A trilogia do sul de Silvio Back

Acabo de assistir à defesa da tese de doutorado da colega Rosane Kaminski sobre três filmes do diretor Silvio Back.

O trabalho foi muito elogiado pelos professores da banca, e prometo colocar o link aqui assim que estiver disponível a tese em versão digital.

Ressalto que os professores comentaram que trata-se de um trabalho fundamental sobre um cineasta injustamente omitido no canon do cinema brasileiro. O trabalho da Rosane resgata um pouco dessa obra através de cuidadosa pesquisa histórica.

Os filmes tratados na tese são Lance maior (1968), Guerra dos pelados (1970) e Aleluia Gretchen (1976). Dialogam com o Cinema Novo, mas tentam oferecer uma visão sulista, em contraposição à temática nordestina (Glauber) ou carioca (Nelson Pereira dos Santos). Por isso chamar ao conjunto dos três filmes de "trilogia do sul".

Fico com a pulga atrás da orelha para ver os filmes e ler a tese.

Mais Israel-Palestina

Este blog começa a receber visitas ilustres e provocar algum debate.

Me meti a escrever sobre um tema espinhoso e difícil, e recebi um justo puxão de orelha do meu chará do Contra-senso nos comentários do último post que fiz sobre este tema.

Corrijo-me aqui de alguns escorregões e discuto algumas colocações do comentarista:

Se pode ser exagero do Idelber falar em chacina, por outro lado, comparar o número de mortos em outros conflitos não alivia a barra de Israel. Nunca pretendi dizer, que Israel seja o culpado da situação de conflito. A confiar nas informações de Paul Johnson em sua História dos Judeus, ambos os lados contribuíram muito para o problema. Os árabes vizinhos nunca aceitaram o estado judeu, e, por conta disso, nunca incorporaram os refugiados palestinos deslocados pela migração de judeus europeus (askenazin) que vieram povoar o novo Estado. Por outro lado, dizer que os árabes pretendem a eliminação do Estado de Israel é parcialmente verdadeiro e parcialmente falacioso. Recusar o "Estado Judeu" significa reivindicar um Estado plural como o que existe no Líbano, com pluralidade de representação religiosa na partilha do poder político.

Quando disse que há sobrerrepresentação judaica na imprensa não pretendi mostrar qualquer ponta de anti-semitismo. Não citaria jamais "os protocolos" como afirma o meu chará, subestimando um pouco minha inteligência. Há sim um percentual maior de judeus na atividade jornalística, como em toda atividade intelectual (cientistas, escritores, filósofos, etc) e no comércio. Não é devido a questões de aptidão étnica, mas de tradição de valorização da educação, do debate contraditório (não é à toa que meu amigo chama seu blog de contra-senso) até mesmo pelas inúmeras restriões a se fixar à terra e possuir bens que os judeus sempre enfrentaram na história.

Assim, sobrerrepresentação na imprensa não significa que todos os jornalistas judeus sejam ativamente pró-Israel. Acho que niguém critica mais os judeus do que os próprios judeus. Por outro lado, não há como negar que os judeus têm maior capacidade intelectual e organizativa para preservar sua memória. Inclusive através de uma fabulosa rede de proteção mútua internacional que vêm permitindo a sobrevivência deste povo há milênios. Só para lembrar, homossexuais, comunistas e eslavos (poloneses - 9 milhões de mortos, e russos - 20 milhões) foram vitimizados pelo nazismo até em maior número do que os judeus. Mas estes conseguiram preservar muito melhor a sua memória, de modo que o mundo nunca mais se esqueça.

Há ainda mais um componente que não pode ser esquecido, sobre o qual deixo para escrever em outros posts: o fundamentalismo evangélico e sua escatologia.

terça-feira, 25 de março de 2008

Missões e cultura local – os jesuítas no Brasil

Um dos maiores problemas de enviar um mensageiro religioso para pregar a outras culturas é que é bem difícil saber onde termina a pregação religiosa e começa o massacre cultural.

Além do massacre cultural, a evangelização/colonização de povos “pagãos” pelos cristãos europeus perpetrou também massacres físicos, com a guerra, a escravização, a morte por doenças contagiosas e, até mesmo, a simples chacina dos que se recusaram aderir à nova fé.

Mas, entre as muitas práticas condenáveis dos missionários, alguns fatores positivos chamam a atenção. Entre os indígenas da América, os missionários jesuítas muitas vezes se posicionaram como atenuadores dos horrores da colonização, preocupando-se em olhar para a cultura do outro e não apenas destruí-la.

Eles foram os pioneiros no estudo das línguas indígenas, desenvolvendo as chamadas “línguas gerais” nas colônias portuguesas. Para estas línguas escreveram gramáticas, catecismos e também músicas.

Pelo que indicam os documentos mais antigos, no início de sua atuação, os jesuítas utilizavam-se, além da língua dos índios, também de suas melodias. Uma das críticas do Bispo Sardinha era que os meninos órfãos cantavam “cantares de Nossa Senhora ao tom gentílico” (Car.PeSar.1, 1552, p. 358); em resposta, Nóbrega afirmou que uma forma de atrair os índios era “cantar cantigas de Nosso Senhor em sua língua e pelo seu tom” (Car.MaNob.6, [1552], p. 407). Não foram encontradas referências posteriores ao uso de melodias indígenas ou de cantigas “pelo seu tom”. Exatamente como ocorreu com o uso dos instrumentos dos índios, essa prática provavelmente foi logo abandonada. (Holler, 2006, p. 157)

Car.PeSar.1, 1552.
Carta do Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha ao Padre Simão Rodrigues. [Bahia, julho de 1552].

Car.MaNob.6, 1552.
Carta do Padre Manoel da Nóbrega ao Padre Simão Rodrigues. [Bahia, fins de agosto de 1552].

domingo, 23 de março de 2008

O conflito Israel-Palestina

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(atualização: se você chegou aqui pelo google, este é meu post mais antigo sobre o assunto. O mais atual é este: Propostas de solução para o conflito Israel-Palestina: carta aberta de Uri Avnery a Barak Obama)


O conflito Israel-Palestina é uma das grandes questões do mundo contemporâneo. É polêmica pura. Envolve paixões. Tem origens históricas profundas. Por tudo isso, não é uma questão simples.

Neste início de 2008 a violência teve nova escalada na região, com vários ataques militares israelenses. A última vez que vi publicada uma contagem de mortos palestinos o número já estava em mais de duzentos. Civis. Velhos, mulheres e crianças.

Em decorrência disso, dois grandes blogueiros se engalfinharam numa disputa particular em torno da questão Israel-Palestina. O Pedro Dória escrevendo do ponto de vista judeu e o Idelber Avelar escrevendo do ponto de vista Palestino.

Pedro Dória é um jornalista muito experiente, especialmente dedicado a questões internacionais, tema a respeito do qual seu blog é sempre uma das grandes fontes de informação na internet. Idelber Avelar é professor doutor de literatura latino-americana em universidade nos EUA. É no mínimo um intelectual de altíssimo nível, certamente não apenas conhecedor de literatura, mas também de música, de política e de história.

O Pedro Doria escreveu um post no qual mostra que os dois lados estão errados na questão – uma posição equilibrada que é, a meu ver, a chave para a solução do conflito. Violência se paga com violência – assim grupos de libertação da Palestina e o exército israelense estão num círculo vicioso do qual não existe saída.

O Idelber Avelar se ofendeu e escreveu um post desancando o amigo. Culpa dos dois lados? Nada disso. Israel é que tem o poder e oprime os palestinos (é verdade mesmo), que só reagem. O post do Idelber tem fotos, e faz uma coisa que a imprensa não costuma fazer: mostra o sofrimento dos palestinos, sua humanidade.

Em tempos pós atentado às torres gêmeas de Nova Iorque as únicas imagens que vemos de muçulmanos é a de monstros-assassinos-terroristas-saguinários. Mentira. Propagada por uma imprensa norte-americana muito poderosa e intimamente ligada aos interesses da geo-política do país e de seus governos. Lembremo-nos que existe também um número desproporcionalmente alto de judeus na atividade jornalística em todo o Ocidente, bem como uma incrível parcela de capital de judeus no controle dos grandes grupos de comunicação. O próprio Pedro Dória afirma-se simpático à causa judaica também por origem de família. Por causa disso, acho que o Idelber faz um papel importante no debate: defende o lado mais fraco, sempre sub-representado em todos os debates sobre a questão.

Principalmente depois que os EUA venceram a Guerra Fria, e deixou de existir um forte movimento comunista internacional que sempre se postava a favor dos árabes, se não por outro motivo, pelo menos para ser contra os interesses norte-americanos.

Acontece que o Idelber é amigo do Pedro Doria, e esqueceu de avisar que ia colocar um post tão forte. Isso ofendeu o jornalista, que escreveu um post jogando a toalha. Mais ou menos o que ele diz é que não vale a pena se desgastar num debate tão violento e que sempre deixa profundas marcas. Afinal, é impossível discutir a questão sem receber os respingos do esgoto anti-semita que ainda anda tão forte por este mundo afora.

O Idelber se comoveu com a dor do amigo e tentou contemporizar num outro post. Inclusive foi alertado por leitores que tinha entendido errado algumas coisas que o Doria escreveu. É o típico caso em que o intelecto se turva pelas emoções e as palavras viram símbolos de uma luta intestina.

Passado algum tempo, o Idelber volta à questão. Para sorte dos leitores interessados, os melindres não paralisaram o debate, que é muito necessário. Ainda mais quando envolve dois conhecedores como os nossos blogueiros. Agora ele propôs um livro como leitura para o debate, convidando os leitores do blog a entrarem na dança. O Doria topou. Mas propôs mais livros, onde a questão não fosse vista apenas pelo lado pró Palestina.

Rafael Galvão complementou a questão, ajudando a entender por que não é absurdo comparar a atual política israelense com a dos nazistas.

Aqui do blog, vou acompanhar a questão. Não poderei ler os livros propostos por falta de tempo agora. Mas vou escrever mais sobre o tema, especialmente tentando trazer subsídios históricos que ajudem a elucidar o conflito mais intrincado do século XX, já se desdobrando pelo século XXI adentro...

sexta-feira, 21 de março de 2008

Piaf

Quinta-feira fui à locadora escolher um filme para o feriado. Pela primeira vez na vida escolhi um que estava no cartaz de divulgação (normalmente nem alugo lançamento, pois é mais caro, e tem tanto filmão em catálogo).

Trata-se da biografia de um dos grandes nomes da música francesa, a cantora Edith Piaf. História de vida com todos os ingredientes para dar um bom filme: infância trágica, pais problemáticos, criada num bordel da Bretanha enquanto o pai estava na guerra. A mãe não tinha as faculdades mentais em ordem para criar a filha. Adolescência passada na boemia, cantando na rua para conseguir sustento.

Ali descoberta pelo dono de um café-concerto, depois “adotada” por um professor de canto e em passos rápidos para a fama. Carreira norte-americana. Bebida farta. Um reumatismo que a faz parecer octogenária aos 40 anos. A morte trágica aos 48, após passar mal no palco em vários shows.

Eu não tinha idéia de quem fosse esta grande personagem. O nome me dava a vaga noção de ser uma cantora francesa de renome. A história de vida a faz semelhante a tantas outras damas do jazz ou da música popular, como Billie Holiday, nascida no mesmo dia.

O filme é muito bem produzido. Cenários caprichados, bons atores. É claro, ótima música. A crítica talvez exagere um pouco nos elogios.

O que me chama a atenção, sobretudo, é a corda bamba em que se passa a vida de gente como Piaf. Tragédia pessoal aliada a um talento incomum. Um ser à margem do socialmente aceitável, mas ao mesmo tempo admirada e muito rica. O brilhantismo artístico na beira do precipício da loucura. Será que os mais talentosos são também os que têm mais dificuldade de se amoldar a certas convenções sociais?